Na estação de Lviv, uns fogem para fronteira, outros partem para a guerra

Cidade no oeste da Ucrânia é ponto de encontro entre os que tentam escapar do conflito e os que vão em direção a ele

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Por Gustavo Basso, Especial para o Estadão
8 min de leitura

LVIV, UCRÂNIA - Celular na mão, como se pudesse unir som e imagem uma última vez antes da partida do trem, Yevgeni Gonishuk se aproximava e se afastava da janela do trem parado na estação central de Lviv, oeste da Ucrânia. No vidro embaçado, sua mulher, Oksana, desenha um coração que aos poucos vai derretendo com vapor do interior do trem lotado de ucranianos ansiosos para chegar à Polônia.

Gonishuk sabe que a família precisa fugir. Resistiu cinco dias acordado para trazê-los até o trem. Oksana, Yevgeni e os filhos Anya, de 9 anos, e Ilya, de 13, vieram de Kharkiv, alvo de bombardeios intensos desde as primeiras horas da invasão russa, em 24 de fevereiro.

Por duas semanas a família conseguiu se manter reunida, mas o terror da guerra aérea se tornou demais para eles. Yevgeni mostra uma foto em seu telefone de edifícios esmagados da cidade, pouco menor que Porto Alegre, com bairros inteiros em ruínas. “Vi tantas pessoas mortas, havia bombas o tempo todo”, lamenta.

Irina Kotliar morava perto de uma Academia Militar em Kharkiv; nos primeiros dias da guerra os objetivos estratégicos foram alvos prioritários e ela diz ter assistido seu bairro inteiro ser varrido do mapa Foto: Gustavo Basso

O número de refugiados ucranianos supera 3,7 milhões. Oksana e os filhos se juntam a esta multidão que vem se espalhando aos poucos pela União Europeia, mas ainda muito concentrada na Polônia. “Nunca estive longe da minha família, mas só queria que eles estivessem fora de perigo”, conta Yevgeni. Apesar do desejo, homens de 18 a 60 anos estão proibidos de deixar a Ucrânia desde o começo do conflito.

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Minutos antes da partida, a família se reúne em uma das portas para uma última despedida. Anya chora enquanto observa o pai, até que o trem parte em direção a Przemysl, a primeira cidade polonesa após a fronteira, e Gonishuk desaparece pela estação, escondido pela multidão que aguardava o próximo trem.

Despedidas

A estação de Lviv se tornou porta de entrada para muitos e despedida de outros. O antigo prédio barroco fica próximo ao centro histórico e, de longe, parece mais um palácio. Poucos metros separam as plataformas 4 e 5, destinadas exclusivamente aos passageiros que deixam o país. Do outro lado, da plataforma 3, embarcavam soldados em direção ao front em Dnipro.

Lviv é vital para que as tropas ucranianas não fiquem isoladas do restante do país, com o avanço russo vindo da Crimeia e de Kherson. Com a Ucrânia sob mobilização total, 100 novos soldados são formados todos os dias, muitos deles no entorno de Lviv, onde ainda é possível o treinamento com certa segurança.

O sentimento dos que ficam, no entanto, não poderia ser mais contraditório. Yarina e Andrew são um das dezenas de casais que protagonizaram cenas marcantes de despedidas emocionadas. Os beijos, abraços e lágrimas se alongam, enquanto colegas conversam apreensivos sobre as batalhas.

“Nós já vencemos essa guerra”, disse um soldado de partida, que preferiu não se identificar temendo a espionagem russa – um medo onipresente na Ucrânia dentro do cenário atual. “Putin achou que conseguiria fazer aqui o que fez na Chechênia, mas somos muito maiores e a resistência vai sobreviver.”

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Sobre ter medo do que o espera no front, o grupo de amigos desconversa. Em uma terra onde cada dia que passa os homens são mais numerosos que as mulheres, o medo não é permitido.

Rota de fuga

Apesar dos combates e ataques aéreos ao norte, leste e sul da Ucrânia, os serviços ferroviários continuam funcionando. Os mais de 21 mil quilômetros de ferrovias – mais do que Espanha e Reino Unido, e próximo dos 29 mil quilômetros do Brasil, país 14 vezes maior – continuam conectando cidades sob ataque, como Kiev, Kharkiv, Zaporizhia e Odessa.

Somente na sexta-feira estavam programadas 55 partidas da estação ferroviária de Lviv, apenas 15 delas rumo a países vizinhos ou cidades fronteiriças. Doações, equipamento de apoio para as tropas e alimentos viajam lado a lado com os soldados, que atiram mochilas e sacolas pesadas dentro dos vagões disponíveis.

Lilya Jura brinca com uma das crianças alojadas com ela na igreja batista transformada em abrigo para refugiados Foto: Gustavo Basso

Do futuro ninguém mais sabe. Os planos foram abandonados em 24 de fevereiro, quando Putin ordenou a invasão. Assim partem os trens, em direções opostas, observados por amigos e parentes que compartilham uma angústia em comum e temem pela vida dos que vão embora a bordo dos velhos vagões.

A cena na estação central de Lviv parece deslocada do século 21, como se fosse um retrato do passado, quando um povo europeu usava os trens para escapar de outro conflito. Desta vez, os vagões partem levando ucranianos que não sabem o que os aguarda no destino final.

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Refugiados temem bombardeios contra abrigo

Aos 60 anos, todos passados em Kharkiv, Irina Kotliar não esperava estar a essa altura da vida dormindo em um beliche ao lado de outras 60 pessoas. Mas esta é sua rotina nos últimos dias, desde que conseguiu escapar da antiga capital ucraniana sob bombardeios.

Hoje, Irina evita sair do abrigo para refugiados improvisado em uma igreja batista em Lviv, pouco distante da estação de trem por onde havia chegado, três dias antes. O terror de um ataque aéreo leva ela e os pais de muitas das crianças a se manterem sob o teto do antigo depósito convertido em igreja, em 2018. Mas o enclausuramento não é algo novo para a aposentada.

“Passei dez dias com outras 400 pessoas em um abrigo antibomba subterrâneo, enquanto ouvia o Exército russo destruir os edifícios do nosso bairro, que foi o mais devastado da cidade simplesmente por ser vizinho de uma academia militar”, contou. “Na primeira oportunidade, peguei apenas uma mala com os itens mais necessários e embarquei em um trem em direção a Lviv. Mesmo assim, foram 18 horas de viagem sem conseguir sentar com o trem abarrotado.”

Parceria

No sufoco do trem, Irina conheceu a amiga e parceira de refúgio, Lilya Jura, de 61 anos. Da viagem, ela lembra mais do temor do que do desconforto. “Eles continuavam bombardeando as proximidades do trem. Tivemos de passar três horas parados, só esperando o fim dos ataques, rezando para não sermos atingidos”, disse Lilya, também aposentada, que deixou tudo para trás, até os animais de estimação, para salvar sua vida.

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O pastor responsável tanto pela igreja quanto pelo abrigo já foi um refugiado no oeste da Ucrânia. Na visão de Elisey Pronin, a guerra com os russos não dura 30 dias, mas oito anos. A Província de Luhansk, onde cresceu e morava, foi tomada pelo conflito em 2014, quando tropas separatistas apoiadas pelo governo russo tomaram controle de parte da região, fundando a República Popular de Luhansk, parceira da vizinha República Popular de Donetsk, na região do Donbas.

Crítico do movimento separatista, Pronin foi ameaçado de morte e teve a igreja onde pregava em Luhansk incendiada. Com o auxílio de igrejas batistas no exterior, ele articulou uma rede de doações e voluntários que garante colchões, cobertores, itens de limpeza e brinquedos para as mais de 230 pessoas atendidas em duas instalações – há uma segunda, ainda maior, nos subúrbios de Lviv. Os atendidos permanecem em média de três a quatro dias antes de partir para países da União Europeia.

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