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O legado de Obama

Uma política externa americana para a América Latina digna do século 21

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Por Peter Hakim
Atualização:

Quando os 35 chefes de Estado do hemisfério ocidental se reunirem para a próxima Cúpula das Américas no Panamá, em abril, o presidente dos EUA, Barack Obama, terá a oportunidade de exibir algumas mudanças históricas feitas por ele na política externa americana para a América Latina e o Caribe. A mais dramática foi a decisão de reverter a política dos EUA em relação a Cuba, encerrando 50 anos de embargo político e econômico da ilha e começando a se envolver diretamente com o governo e o povo do país. Ao acabar com a mais poderosa fonte de sentimento antiamericano na região, a mudança de posição em relação a Cuba pode ser a mais importante iniciativa americana voltada para a América Latina desde quando o presidente Jimmy Carter assinou os Tratados do Canal do Panamá, em 1977, conferindo ao país centro-americano soberania sobre a via marítima. E duas novas políticas recém-definidas na Casa Branca - envolvendo drogas e imigração - também serão exibidas na cúpula. Mas Washington ainda tem muito a fazer para reconquistar a confiança dos latino-americanos. Não surpreende que as políticas americanas de imigração sejam fonte de frustração na América Latina. Os governos da região se ressentem do tratamento dado a seus cidadãos nos EUA e do grande número deles que é deportado todos os anos. Com duas ordens executivas, no ano passado, o presidente Obama colocou em movimento a mais abrangente reforma da política de imigração em três décadas. Se for implementada integralmente, quase metade dos imigrantes não documentados nos EUA poderia se tornar residente legal. A política para as drogas tem sido outro motivo de irritação para a América Latina. De fato, muitos dos parceiros e aliados dos EUA na região criticaram fortemente os programas antidrogas de Washington. Mas, hoje, sob pressão dos líderes latino-americanos, Washington está mostrando alguma flexibilidade em suas estratégias de combate aos narcóticos. O presidente Obama declarou que a "guerra às drogas" acabou. Os EUA passarão a incentivar cada país a desenvolver programas que atendam às próprias necessidades, interpretando os tratados internacionais antidrogas com mais flexibilidade. A iniciativa do presidente Obama para Cuba ressoou em toda a América Latina. A medida foi elogiada pelos governos da região, até por aqueles hostis aos EUA. Ao fazer um apelo pela renovação das relações diplomáticas normais e a rápida expansão dos laços econômicos e culturais, o presidente pôs fim à acirrada discordância dos EUA com todos os países latino-americanos em se tratando da política para Cuba. Ainda é muito cedo para avaliar o impacto que as novas abordagens políticas de Obama para Cuba, drogas e imigração terão na região. Sua implementação mal começou - e ainda são envolvidas por grande controvérsia em Washington. Num ambiente de divisão política, com maioria republicana em ambas as Casas do Congresso, existe a possibilidade de todas as propostas do presidente serem bloqueadas ou revertidas. A Câmara dos Deputados já aprovou uma proposta de lei para impedir a reforma da imigração. Ainda que sobrevivam ao Congresso atual, não são medidas plenas. Não têm a força de lei e podem ser modificadas ou suspensas pelos próximos presidentes. Por fim, por mais ousadas e bem formuladas que sejam as iniciativas de Obama, são no máximo primeiros passos para lidar com três desafios muito complicados que seguem evoluindo. Os limites da proposta de Obama para a imigração são claros. A maioria dos imigrantes sem documentos será excluída dos benefícios. O status jurídico concedido aos que se enquadrarem é apenas temporário e não oferece a possibilidade de requerer cidadania, nem para os que moram nos EUA há vários anos. As deportações e famílias divididas que resultam desse processo podem não diminuir muito. A ação do Congresso em todas essas dimensões ainda é urgente. Os EUA estão fazendo pouco para reduzir sua demanda por drogas e manter suas armas fora da América Latina. Embora as políticas americanas estejam mudando, o processo é lento e a percepção da mudança é pequena na América Latina. Algumas agências americanas de combate às drogas estão resistindo à nova pauta. E, embora algumas direções novas e promissoras tenham surgido para essas políticas - incluindo o foco nas questões ligadas à demanda e à saúde, ao policiamento comunitário, novas abordagens para a detenção de menores -, nenhum consenso emergiu na América Latina sobre o que fazer com o problema das drogas e da violência. A proposta de reatar relações com Cuba também tem ainda um longo caminho a percorrer. Os 50 anos de embargo americano e a ocupação de Guantánamo pelos EUA continuarão a ter impacto negativo nas relações dos americanos com Cuba e o restante da América Latina. Até que o Congresso aja, Guantánamo e o embargo continuarão sendo poderosos símbolos da falta de cuidado, da mão pesada e da ocasional insensibilidade dos EUA. Ao bloquear o comércio e o investimento americano, a assistência ao desenvolvimento, o turismo e as viagens, o embargo é também um contínuo obstáculo para o avanço econômico de Cuba. Questões políticas serão importantes ao moldar a evolução da política americana para Cuba no futuro (e também das políticas para a imigração e as drogas). As eleições de 2016 para a presidência e o Congresso certamente afetarão a abordagem de Washington para a ilha. Mas a política americana também será pesadamente influenciada pelas ações de Havana. Se o governo cubano mantiver o controle autoritário atual, as restrições e sanções impostas pelos americanos provavelmente serão mantidas. Por outro lado, passos sérios na direção da abertura política e econômica vão melhorar as perspectivas de normalização. Até agora, os sinais enviados por Havana foram contraditórios. Conforme o combinado, os cubanos libertaram 53 prisioneiros políticos, o que facilitou as negociações entre os dois países. Mas, até o momento, o presidente Raúl Castro não demonstrou - ao menos publicamente - muito interesse em mudanças mais profundas na política e na economia. Ele insistiu que Cuba vai manter o curso dos últimos 50 anos. Os próximos meses serão um período de intensa negociação e testes mútuos para os governos dos EUA e Cuba. Os desenvolvimentos desse período, imediatamente anteriores à Cúpula do Panamá, podem alterar o panorama, mas o clima deve ser mais positivo do que nas outras cúpulas dos últimos 12 anos. A presença de Raúl Castro, primeiro líder cubano a comparecer ao evento, será comemorada. E todos os chefes de Estado participantes vão aplaudir as iniciativas do presidente Obama para a América Latina, especialmente sua abertura em relação a Cuba. Ainda assim, seria prematuro esperar grandes guinadas na substância e no tom das relações interamericanas. Independentemente das demonstrações de boa vontade que possam emergir na cúpula, a maioria dos países latino-americanos continuará a tratar os EUA com desconfiança e cautela - por mais que promovam pragmaticamente relações cordiais com Washington. Com a justificativa de sua considerável experiência histórica, os latino-americanos terão dúvidas a respeito da aplicação concreta das propostas de Obama nos EUA e sua manutenção no futuro. Não seria a primeira vez que mudanças políticas em Washington produzem acentuadas reversões nas políticas dos EUA - desafios em outros lugares capturam a atenção e os recursos de Washington. As ações executivas de Obama envolvendo Cuba, a imigração e as drogas começaram a alinhar a política externa americana com o pensamento latino-americano em três temas fundamentais nas relações interamericanas. Mas as relações dos EUA com a América Latina também foram abaladas e transformadas nos últimos anos em decorrência de outras tendências e questões de peso. Independentemente de suas opiniões em relação à política externa americana, os países latino-americanos são mais independentes dos EUA do que antes. São mais confiantes e assertivos e expandiram e diversificaram suas relações pelo globo. Conforme as economias e instituições da América Latina ganharam força, autonomia e alcance, os EUA projetaram um perfil mais discreto na região e sua influência em geral foi reduzida. Mas, ao mesmo tempo, as relações bilaterais de Washington com muitos governos se tornaram mais variadas e complexas. Por exemplo, embora as drogas e a imigração continuem a ser preocupações fundamentais para as relações bilaterais entre México e EUA, as oportunidades e desafios enfrentados conjuntamente pelos dois países vão muito além desses temas. A restauração das prejudicadas relações entre EUA e Brasil vão exigir que sejam encontrados pontos de acordo em relação aos problemas ligados à vigilância internacional e outras questões globais. Ao buscar ativamente a reconciliação com Cuba e abordar de maneira enérgica dois outros problemas sérios nas relações com a América Latina, a Casa Branca de Obama começou a eliminar vários obstáculos para as parcerias na região. Por mais que tenham sido impulsionadas por realidades políticas domésticas e reflitam mudanças na demografia e no posicionamento dos EUA, as decisões do presidente devem começar a aumentar a credibilidade americana entre aliados e adversários na América Latina. Se as propostas dele forem implementadas (e ratificadas e prorrogadas pelo Congresso), podem abrir o caminho para uma relação mais cooperativa e produtiva entre EUA e América Latina. Podem ser o mais poderoso legado do presidente Obama na política externa e, sem dúvida, devem render a ele mais do que alguns vivas durante a Cúpula das Américas no Panamá, em abril. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL *Peter Hakim é presidente do diálogo interamericano

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