Perseguidos pela Rússia, jornalistas da ‘AP’ narram fuga de Mariupol sitiada

Os dois jornalistas, os últimos na cidade sitiada, fugiram após descobrirem que estavam na lista de procurados pelos russos

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Por Mstyslav Chernov
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14 min de leitura

MARIUPOL, ASSOCIATED PRESS - Os russos estavam nos caçando. Eles tinham uma lista de nomes, incluindo o nosso, e estavam se aproximando.

Estávamos documentando o cerco da cidade ucraniana pelas tropas russas há mais de duas semanas e éramos os únicos jornalistas internacionais que restaram na cidade. Estávamos reportando dentro do hospital quando homens armados começaram a correr pelos corredores. Os cirurgiões nos deram jalecos brancos para usar como camuflagem.

De repente, ao amanhecer, uma dúzia de soldados entrou: “Onde estão os jornalistas, pelo amor de Deus?”

Olhei para suas braçadeiras, o azul de Ucrânia, e tentei calcular as chances de que fossem russos disfarçados. Dei um passo à frente para me identificar. “Estamos aqui para tirar vocês,” eles disseram.

As paredes da sala de cirurgia tremeram com a artilharia e o fogo de metralhadoras do lado de fora, e parecia mais seguro ficar lá dentro. Mas os soldados ucranianos receberam ordens de nos levar com eles.

O fotógrafo da Associated Press Evgeniy Maloletka aponta para a fumaça de um bombardeio em uma maternidade em Mariupol, Ucrânia, em 9 de março Foto: Mstyslav Chernov/AP

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Corremos para a rua, abandonando os médicos que nos abrigaram, as mulheres grávidas que foram bombardeadas e as pessoas que dormiam nos corredores porque não tinham para onde ir. Eu me senti terrível deixando todos eles para trás.

Nove minutos, talvez dez, uma eternidade por estradas e prédios bombardeados. Quando os projéteis caíram nas proximidades, caímos no chão. O tempo foi medido de um projétil a outro, nossos corpos tensos e a respiração presa. Onda de choque após onda de choque sacudiram meu peito, e minhas mãos ficaram frias.

Chegamos a uma entrada e carros blindados nos levaram para um porão escuro. Só então soubemos por um policial por que os ucranianos arriscaram a vida de soldados para nos tirar do hospital.

O fotógrafo da Associated Press Evgeniy Maloletka ajuda um paramédico a transportar uma mulher ferida durante um bombardeio em Mariupol, leste da Ucrânia, em 2 de março Foto: Mstyslav Chernov/AP

“Se eles te pegarem, eles vão te colocar na frente de uma câmera e vão te fazer dizer que tudo o que você filmou é mentira”, disse ele. “Todos os seus esforços e tudo o que você fez em Mariupol serão em vão.”

O oficial, que uma vez nos implorou para mostrar ao mundo sua cidade destruída, agora nos implorava para irmos. Ele nos empurrou em direção aos milhares de carros danificados que se preparavam para deixar Mariupol.

Era 15 de março. Não tínhamos ideia se sairíamos vivos.

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Quando adolescente, crescendo na Ucrânia, na cidade de Kharkiv, a apenas 32 quilômetros da fronteira com a Rússia, aprendi a manejar uma arma como parte do currículo escolar. Parecia inútil. A Ucrânia, pensei, estava cercada de amigos.

Desde então, cobri guerras no Iraque, Afeganistão e no disputado território de Nagorno Karabakh, tentando mostrar ao mundo a devastação em primeira mão. Mas quando os americanos e depois os europeus retiraram seus funcionários da embaixada da cidade de Kiev, e quando me debrucei sobre os mapas do acúmulo de tropas russas em frente à minha cidade natal, meu único pensamento foi: “Meu pobre país”.

Nos primeiros dias da guerra, os russos bombardearam a enorme Praça da Liberdade em Kharkiv, onde morei até meus 20 anos.

Eu sabia que as forças russas veriam a cidade portuária oriental de Mariupol como um prêmio estratégico por causa de sua localização no mar de Azov. Assim, na noite de 23 de fevereiro, fui para lá com meu colega de longa data Evgeniy Maloletka, um fotógrafo ucraniano da Associated Press, em sua van branca Volkswagen.

No caminho, começamos a nos preocupar com estepes para os pneus e encontramos online um homem próximo disposto a vender para nós no meio da noite. Explicamos a ele e a um caixa da mercearia 24 horas que estávamos nos preparando para a guerra. Eles olharam para nós como se fôssemos loucos.

Chegamos a Mariupol às 3h30. A guerra começou uma hora depois.

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O cinegrafista da Associated Press, Mstyslav Chernov, caminha em meio a fumaça subindo de uma base de defesa aérea após um ataque russo em Mariupol, Ucrânia, em 24 de fevereiro Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Cerca de 1/4 dos 430.000 moradores de Mariupol partiram naqueles primeiros dias, enquanto ainda podiam. Mas poucas pessoas acreditavam que uma guerra estava chegando e, quando a maioria percebeu seu erro, já era tarde demais.

Uma bomba de cada vez, os russos cortaram a eletricidade, a água, o abastecimento de alimentos e, finalmente, as torres de telefonia celular, rádio e televisão. Os poucos outros jornalistas da cidade saíram antes que as últimas conexões terminassem e um bloqueio completo se instalasse.

A ausência de informação em um bloqueio cumpre dois objetivos.

O caos é o primeiro. As pessoas não sabem o que está acontecendo e entram em pânico. No começo eu não conseguia entender por que Mariupol se desfez tão rapidamente. Agora eu sei que foi por causa da falta de comunicação.

A impunidade é o segundo objetivo. Sem nenhuma informação saindo de uma cidade, sem fotos de prédios demolidos e crianças morrendo, as forças russas podiam fazer o que quisessem. Se não fosse por nós, não haveria nada.

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É por isso que corremos tantos riscos para poder enviar ao mundo o que vimos, e foi isso que deixou a Rússia com raiva o suficiente para nos caçar.

Eu nunca, nunca senti que quebrar o silêncio era tão importante.

O fotógrafo da Associated Press Evgeniy Maloletka tira uma foto do corpo de uma menina, morta em um bombardeio de uma área residencial, no hospital da cidade de Mariupol, em 27 de fevereiro Foto: Mstyslav Chernov/AP

As mortes vieram rápido. Em 27 de fevereiro, assistimos a um médico tentar salvar uma garotinha atingida por estilhaços. Ela morreu.

Uma segunda criança morreu, depois uma terceira. As ambulâncias pararam de recolher os feridos porque as pessoas não podiam chamá-los sem um sinal, e eles não podiam navegar pelas ruas bombardeadas.

Os médicos nos imploraram para filmar as famílias trazendo seus próprios mortos e feridos, e nos deixaram usar a energia cada vez mais baixa do gerador para nossas câmeras. Ninguém sabe o que está acontecendo em nossa cidade, eles disseram.

O bombardeio atingiu o hospital e as casas ao redor. Quebrou as janelas da nossa van, abriu um buraco na lateral e perfurou um pneu. Às vezes corríamos para filmar uma casa em chamas e depois corríamos de volta em meio às explosões.

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Ainda havia um lugar na cidade para obter uma conexão estável, do lado de fora de uma mercearia saqueada na avenida Budivel’nikiv. Uma vez por dia, íamos até lá e nos agachávamos embaixo das escadas para enviar fotos e vídeos para o mundo. As escadas não fariam muito para nos proteger, mas parecia mais seguro do que estar ao ar livre.

Explosão em um prédio residencial após um tanque do exército russo disparar em Mariupol em 11 de março Foto: Evgeniy Maloletka/AP

O sinal desapareceu em 3 de março. Tentamos enviar nosso vídeo das janelas do 7º andar do hospital. Foi de lá que vimos os últimos fragmentos da sólida cidade de classe média de Mariupol se desfazerem.

A superloja de Port City estava sendo saqueada, e seguimos por ali por meio de artilharia e metralhadoras. Dezenas de pessoas corriam e empurravam carrinhos de compras carregados de eletrônicos, comida e roupas.

Uma granada explodiu no telhado da loja, me jogando no chão do lado de fora. Fiquei tenso, esperando um segundo golpe, e me xinguei cem vezes porque minha câmera não estava ligada para gravá-la.

E lá estava, outra granada atingindo o prédio ao meu lado com um terrível barulho. Eu me encolhi atrás de um canto para me proteger.

Um adolescente passou levando uma cadeira de escritório carregada de eletrônicos, caixas caindo dos lados. “Meus amigos estavam lá e o projétil caiu a 10 metros de nós”, ele me disse. “Não faço ideia do que aconteceu com eles.”

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Corremos de volta para o hospital. Em 20 minutos, os feridos chegaram, alguns deles empilhados em carrinhos de compras.

O fotógrafo Evgeniy Maloletka em meio aos escombros de um ataque aéreo na Universidade Técnica Estadual de Priazovski em 10 de março Foto: Mstyslav Chernov/AP

Durante vários dias, a única ligação que tínhamos com o mundo exterior era através de um telefone via satélite. E o único local onde o telefone funcionava era ao ar livre, bem ao lado de uma cratera de projétil. Eu me sentava, me fazia pequeno e tentava pegar a conexão.

Todo mundo estava perguntando, por favor, diga-nos quando a guerra terminará. Eu não tive resposta.

Todos os dias, havia um boato de que o exército ucraniano viria para romper o cerco. Mas ninguém veio.

A essa altura eu já havia testemunhado mortes no hospital, cadáveres nas ruas, dezenas de corpos jogados em uma vala comum. Eu tinha visto tanta morte que estava filmando quase sem absorvê-la.

Em 9 de março, dois ataques aéreos destruíram o plástico colado nas janelas de nossa van. Eu vi a bola de fogo apenas um batimento cardíaco antes da dor perfurar meu ouvido interno, minha pele, meu rosto.

Vimos a fumaça subir de uma maternidade. Quando chegamos, os socorristas ainda estavam retirando mulheres grávidas ensanguentadas das ruínas.

Mariana Vishegirskaia deitada em uma cama de hospital após dar à luz sua filha Veronika. Ela sobreviveu ao ataque aéreo russo a uma maternidade Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Nossas baterias estavam quase sem carga e não tínhamos conexão para enviar as imagens. O toque de recolher estava a minutos de distância. Um policial nos ouviu falando sobre como obter notícias do atentado no hospital.

“Isso vai mudar o curso da guerra”, disse ele. Ele nos levou a uma fonte de energia e uma conexão com a internet.

Havíamos gravado tantos mortos e crianças mortas, uma linha interminável. Eu não entendia por que ele achava que mais mortes poderiam mudar alguma coisa.

Eu estava errado.

No escuro, enviamos as imagens alinhando três celulares com o arquivo de vídeo dividido em três partes para agilizar o processo. Levou horas, muito além do toque de recolher. O bombardeio continuou, mas os oficiais designados para nos escoltar pela cidade esperaram pacientemente.

Então nossa ligação com o mundo fora de Mariupol foi novamente cortada.

Voltamos para um porão de hotel vazio com um aquário agora cheio de peixinhos dourados mortos. Em nosso isolamento, não sabíamos nada sobre uma crescente campanha russa de desinformação para desacreditar nosso trabalho.

A Embaixada da Rússia em Londres publicou dois tweets chamando as fotos da AP de falsas e alegando que uma mulher grávida era uma atriz. O embaixador russo exibiu cópias das fotos em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU e repetiu mentiras sobre o ataque à maternidade.

Enquanto isso, em Mariupol, fomos inundados por pessoas que nos perguntavam as últimas notícias da guerra. Tantas pessoas vieram até mim e disseram, por favor, me filme para que minha família fora da cidade saiba que estou vivo.

A essa altura, nenhum sinal de rádio ou TV ucranianos estava funcionando em Mariupol. O único rádio que você conseguia sintonizar transmitia mentiras russas – que os ucranianos estavam mantendo Mariupol como refém, atirando em prédios, desenvolvendo armas químicas. A propaganda era tão forte que algumas pessoas com quem conversamos acreditaram, apesar da evidência de seus próprios olhos.

A mensagem era constantemente repetida, ao estilo soviético: Mariupol está cercada. Entregue suas armas.

Em 11 de março, em uma breve ligação sem detalhes, nosso editor perguntou se poderíamos encontrar as mulheres que sobreviveram ao ataque aéreo da maternidade para provar sua existência. Percebi que a filmagem devia ter sido poderosa o suficiente para provocar uma resposta do governo russo.

Nós as encontramos em um hospital na linha de frente, alguns com bebês e outros em trabalho de parto. Também soubemos que uma mulher havia perdido seu bebê e depois sua própria vida.

Grávida e bebê morrem após ataque russo a maternidade. A imagem dela sendo socorrida rodou o mundo Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Subimos até o 7º andar para enviar o vídeo pela tênue conexão de internet. De lá, observei tanques e mais tanques se aproximando do complexo hospitalar, cada um marcado com a letra Z que se tornara o emblema russo da guerra.

Estávamos cercados: dezenas de médicos, centenas de pacientes e nós.

Os soldados ucranianos que protegiam o hospital haviam desaparecido. E o caminho para nossa van, com nossa comida, água e equipamentos, foi coberto por um franco-atirador russo que já havia atingido um médico que se aventurava do lado de fora.

Horas se passaram na escuridão, enquanto ouvíamos as explosões lá fora. Foi quando os soldados vieram nos pegar, gritando em ucraniano.

Não parecia um resgate. Parecia que estávamos sendo movidos de um perigo para outro. A essa altura, nenhum lugar em Mariupol era seguro e não havia alívio. Você pode morrer a qualquer momento.

Senti-me incrivelmente grato aos soldados, mas também entorpecido. E envergonhado que eu estava indo embora.

Entramos em um Hyundai com uma família de três pessoas e pegamos um engarrafamento de 5 quilômetros para fora da cidade. Cerca de 30.000 pessoas conseguiram sair de Mariupol naquele dia – tantas que os soldados russos não tiveram tempo de olhar de perto os carros cujas janelas estavam cobertas com pedaços de plástico.

Militares e bombeiros ucranianos do lado de fora de uma maternidade atingida em um ataque russo em Mariupol Foto: Evgeniy Maloletka/AP

As pessoas estavam nervosas. Elas estavam brigando, gritando uma com as outras. A cada minuto havia um avião ou um ataque aéreo. O chão tremia.

Atravessamos 15 postos de controle russos. Em cada um, a mãe sentada na frente do nosso carro orava furiosamente, alto o suficiente para que ouvíssemos.

Enquanto passávamos por eles – o 3º, o 10º, o 15º, todos equipados com soldados com armas pesadas – minhas esperanças de que Mariupol sobreviveria estavam desaparecendo. Eu entendi que só para chegar à cidade, o exército ucraniano teria que abrir caminho por muito terreno. E isso não ia acontecer.

Ao pôr do sol, chegamos a uma ponte destruída pelos ucranianos para impedir o avanço russo. Um comboio da Cruz Vermelha de cerca de 20 carros já estava preso lá. Todos saímos da estrada juntos para campos e vielas.

Os guardas do posto de controle nº 15 falavam russo com o sotaque áspero do Cáucaso. Ordenaram que todo o comboio desligasse os faróis para esconder as armas e equipamentos estacionados à beira da estrada. Eu mal conseguia distinguir o Z branco pintado nos veículos.

Quando chegamos ao 16º posto de controle, ouvimos vozes. Vozes ucranianas. Senti um alívio esmagador. A mãe na frente do carro começou a chorar. Nós estávamos fora.

Fomos os últimos jornalistas em Mariupol. Agora não há nenhum.

Ainda somos inundados por mensagens de pessoas querendo saber o destino de entes queridos que fotografamos e filmamos. Elas nos escrevem desesperada e intimamente, como se não fôssemos estranhos, como se pudéssemos ajudá-las.

Quando um ataque aéreo russo atingiu um teatro onde centenas de pessoas haviam se abrigado no final da semana passada, pude identificar exatamente onde deveríamos ir para saber sobre os sobreviventes, para ouvir em primeira mão como era ficar preso por horas intermináveis sob pilhas de escombros. Conheço aquele prédio e as casas destruídas ao redor. Conheço pessoas que estão presas debaixo dela.

E no domingo, as autoridades ucranianas disseram que a Rússia bombardeou uma escola de arte com cerca de 400 pessoas em Mariupol.

Mas não podemos mais chegar lá.

*Mstyslav Chernov é cinegrafista da Associated Press. Este é o seu relato do cerco de Mariupol, conforme documentado com o fotógrafo Evgeniy Maloletka e contado à correspondente Lori Hinnant