Nova Constituição do Chile divide país ao abranger indígenas, mulheres e desigualdade

Alas da direita afirmam não terem tido suas visões incorporadas no texto que contém 499 artigos e deve passar por plebiscito

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Por Fernanda Simas
Atualização:
6 min de leitura

Após dois anos e meio dos grandes protestos sociais no Chile, o esboço da nova Constituição está pronto e tem despertado reações distintas entre a população. Setores da direita reclamam de não terem tido suas visões incorporadas no texto, enquanto organizações civis e movimentos de esquerda dizem que o conteúdo é histórico. O desafio do governo de Gabriel Boric agora é divulgar amplamente o esboço e esperar pela aprovação da nova Carta.

“Esse é um texto muito importante por incluir novos atores sociais, mulheres, povos originários. É resultado de uma Convenção Constitucional que teve representação igualitária, por isso esses temas foram incorporados”, avalia a professora de Estudos Avançados na Universidade de Santiago do Chile Pamela Figueroa.

Com 499 artigos - no que pode se tornar a maior Constituição da América Latina - essa nova Carta Magna foi a saída política encontrada pelo Chile para responder aos protestos que acabaram em cenas de violência em outubro de 2019, quando milhares de chilenos saíram às ruas pedindo maior justiça social num país onde o patrimônio dos mais ricos representou 16,1% do PIB em 2021, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Presidente da Convenção Constitucional exibe rascunho da nova Carta Magna do Chile  Foto: CRISTIAN RUDOLFFI

“É um texto que responde às demandas da sociedade chilena, que, em outubro de 2019, saiu às ruas em massa em mobilizações por maior proteção e presença do Estado. É uma proposta de Constituição que se adequa aos padrões internacionais de direitos humanos e reconhecimento de direitos econômicos, sociais e culturais, uma questão que estava pendente na nossa atual Constituição”, diz a diretora da Corporación Humanas, Mariela Infante.

Insatisfações

A proposta da Nova Constituição não contém temas que eram considerados controversos nas discussões, como o referendo revogatório, a perda de autonomia do Banco Central e a nacionalização da mineração. Mas tem desagradado setores da direita e centro-direita no país, que alegam não terem sido devidamente representados na Convenção Constitucional.

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“A composição da Convenção envolveu uma minoria da centro-direita e permitiu que apenas a esquerda conseguisse o quórum de dois terços para aprovar as normas. Com isso, os integrantes de esquerda praticamente impuseram sua agenda”, diz o advogado e diretor executivo da Fundação Pacto Social, Alejandro Fernández.

Como consequência do que chama de disparidade, Fernández cita justamente o forte papel do Estado nos artigos do rascunho. “Ele exclui o desenvolvimento de políticas públicas diferentes, exclui de forma geral o privado. Todos os direitos sociais contêm uma preferência pelo Estado. Não no aspecto de garantir os direitos, que é algo legítimo, mas no aspecto de executá-los, de prover diretamente saúde, educação…quando já se mostrou que o Estado não cumpre esse papel bem.”

Pamela Figueroa considera que esse cenário resulta justamente da necessidade de a nova Constituição englobar novos atores sociais. “É um texto importante por incluir mulheres, povos originários. É resultado de uma Convenção Constitucional que teve representação igualitária, por isso esses temas foram incorporados.”

A questão dos povos originários é um dos pontos de insatisfação da direita. “Temos conversado com as pessoas e muitos estão insatisfeitos. Um item levou a muitos questionamentos da população: o tema do tratamento privilegiado aos povos originários. Se criam 11 nações dentro do Chile, 11 nações originárias, ou como chamam, nações preexistentes ao Estado. Isso não representa a realidade do povo chileno. Podemos identificar nessa categoria o povo Mapuche. O resto não chega nem a 1% da população. E essa lógica de povo originário tem base em uma localização e os Mapuches estão espalhados.”

Polarização

As pesquisas chilenas mostram um cenário de polarização sobre o rascunho e analistas acreditam que isso seja resultado direto da polarização política que vem sendo vista no país. “O debate constitucional foi polarizado em alguns temas. Agora que o texto já está disponível, os cidadãos poderão formar uma opinião melhor. Acredito que a votação será muito polarizada, mas é um pouco imprevisível porque há muita incerteza. O voto será obrigatório e no Chile, desde 2012, o voto é facultativo, então teremos novos eleitores, cujas opiniões desconhecemos”, afirma Pamela Figueroa.

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O analista político Carlos Meléndez, especialista em temas da América Latina, considera que o fato de o novo projeto ser tão extenso prova que não foi possível chegar a acordos importantes e isso colabora com a desconfiança da população. “A sociedade chilena ainda tem muitas dúvidas sobre o processo constituinte. A nova Carta magna terá que ser difundida massivamente para que se forme uma opinião sobre o texto. Neste momento, há uma grande desconfiança com o processo pela improvisação e pouca seriedade com as quais foi levado adiante.”

Mariela Infante é enfática ao dizer que o rascunho dá força a movimentos sociais e políticos que não estão contemplados na Carta atual, mas concorda que só a divulgação massiva dos artigos vai ajudar no entendimento.

“A verdade é que o texto responde bem às demandas dos cidadãos, mas é preciso ser feito um trabalho importante: dar conhecimento aos temas, e as organizações da sociedade civil vão ajudar nesse processo”, diz ela, citando a luta do movimento feminista e por direitos considerados essenciais pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Aparece claramente uma proposta de meio ambiente livre de contaminação, o direito à moradia…há pontos mais claros sobre direito à educação, à saúde, pautados por um instrumento da ONU. O movimento feminista teve um papel muito relevante em colocar na agenda pública demandas históricas como o direito a uma vida livre de violências, direitos sexuais reprodutivos, participação política, paridade.”

Legitimidade

A nova proposta deve substituir a Carta vigente desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973 - 1990) e será submetida a um plebiscito com voto obrigatório no dia 4 de setembro. O rascunho foi apresentado na segunda-feira 16 e agora segue para a Comissão de Harmonização, que deve cuidar da ordem e coerência dos artigos.

O conteúdo dos artigos não deve mudar, explicam os analistas, apenas alguns detalhes técnicos podem ser revistos. Até o dia 5 de julho, a versão definitiva será entregue ao presidente Boric.

Mesmo estando em lados opostos na visão política sobre o rascunho da nova Constituição, eles concordam que ela precisa existir em razão da defasagem da atual Carta.

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“Esperávamos um texto para reconciliar a população, unir os chilenos, que fosse fruto de grandes acordos e o que vimos foi o contrário. Desaprovo esse texto, infelizmente. Infelizmente porque considero ser importante haver uma nova Constituição, principalmente pelo rechaço da atual pela maioria da população”, afirma Fernández.

“É importante ter uma nova Constituição porque há um consenso de que a atual está totalmente superada por uma mudança muito profunda na sociedade e tem uma origem autoritária”, diz Pamela.

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