Um novo lugar para aprender educação cívica: o local de trabalho

Temendo que o aumento da desconfiança possa significar a ruína dos negócios, algumas empresas estão oferecendo lições de democracia aos funcionários

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Por Melissa Eddy

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Um fim pacífico para a guerra na Ucrânia. Este era o desejo de uma postagem que Simge Krüger fez no LinkedIn em março.

Em resposta, pessoas começaram a postar seus desejos de que o marido, o pai e o irmão dela fossem mortos em combate. Vendo que ela morava na Alemanha, chamaram-na de nazista.

“Eu estava falando de paz e, de repente, era nazista”, disse Krüger, cidadã turca que mora em Hamburgo, durante uma entrevista.

Manifestantes de direita marchando numa reunião semanal em Leipzig, Alemanha, no mês passado. Foto: Ingmar Nolting/The New York Times

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Semanas mais tarde, participando de um workshop liderado por uma organização pró-democracia, ela compreendeu o que tinha acontecido naquele momento vertiginoso. Os insultos não tinham nada a ver com sua origem étnica ou suas tendências políticas. As pessoas que atacaram seu comentário estavam tentando despertar emoção e polarizar ainda mais um mundo dividido por questões como a guerra da Rússia na Ucrânia, a identidade de gênero e as mudanças climáticas.

A melhor maneira de resistir, ela aprendeu na aula, não era tentar explicar sua posição ou se defender, mas fazer perguntas sondando o assunto.

“As pessoas que acreditam em teorias da conspiração geralmente só têm uma linha de argumentação, mas por trás disso não tem mais nada”, disse ela. “Quando você começa a cavar o iceberg, logo vê que ele não tem profundidade”.

Essas lições vieram de um programa de oito semanas oferecido por sua empregadora, a Hays, uma empresa multinacional de recrutamento com 3.500 funcionários na Alemanha. A empresa disse que o projeto concretizou seu objetivo de fortalecer os valores democráticos e deixar os funcionários mais resilientes.

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Em toda a Alemanha, várias centenas de empresas promoveram esses workshops, e aulas semelhantes estão sendo ministradas em outros países ocidentais, até mesmo nos Estados Unidos. As empresas estão descobrindo que precisam apoiar seus funcionários em meio a um debate político cada vez mais mordaz. Seminários sobre princípios cívicos e democráticos - como a importância do voto ou os perigos da desinformação, das teorias conspiratórias e do discurso de ódio - se tornaram uma forma de garantir relações mais saudáveis no local de trabalho e na sociedade em geral. Além disso, relatórios mostram que o crescimento econômico é maior em democracias estáveis e que políticas fronteiriças liberais permitem que as empresas atraiam imigrantes qualificados.

Desde o curso de que Krüger participou, a Hays treinou mais funcionários e incorporou elementos dos workshops à formação obrigatória de toda a empresa, disse Mimoza Murseli, coordenadora de projetos para a diversidade e inclusão na Hays.

Ter instruções sobre como reconhecer e responder ao discurso de ódio e à desinformação deixou os funcionários mais autoconfiantes no desempenho do trabalho, disse Murseli: “Ganhamos confiança para manter nossa posição”.

Grupos como o Business Council for Democracy e o Weltoffenes Sachsen, na Alemanha, e a Civic Alliance e o Projeto Leadership Now, nos Estados Unidos, organizam workshops como aquele de que Krüger participou, oferecem pesquisas e webinars e apoiam a educação cívica e os esforços em prol do voto - todos eles são apartidários. A maioria são organizações sem fins lucrativos, apoiadas por fundações independentes ou por um grupo de empresas que têm sua independência política como marca.

Susann Planert, à esquerda, especialista em política de pessoal do Leipziger Gruppe, e Kerstin Schultheiss, diretora administrativa. Os gerentes da empresa disseram ter notado tensões crescentes entre os funcionários. Foto: Ingmar Nolting/The New York Times

Linguagem inaceitável

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A Alemanha está longe de atingir os níveis de polarização política que assolaram os Estados Unidos. Mas a chegada de mais de 1 milhão de imigrantes em 2015-16 inflamou o debate.

Desde então, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) perturbou o cenário político do país com sua defesa de políticas nacionalistas e anti-imigração. Conhecida por ultrapassar limites e por ter um estilo político mais conflituoso e agressivo, a AfD está ganhando apoio: uma pesquisa recente mostrou que mais de 1 em cada 5 alemães apoiava o partido, acima dos 10% nas eleições de 2021.

Refletindo essa mudança, o tom do debate público ficou mais exaltado. Kerstin Schultheiss, diretora-geral do Leipziger Gruppe, notou isso na sua empresa, que emprega 5 mil pessoas que prestam serviços públicos na cidade de Leipzig.

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Vários gestores lhe falaram sobre o aumento das tensões entre os funcionários, bem como nas relações com o público. Os pontos de inflamação mais comuns foram as origens da pandemia do coronavírus, os mandatos governamentais para conservar energia e a guerra da Rússia na Ucrânia. Funcionários foram alvo de comentários duros que iam além de um típico desentendimento ou reclamação, disse ela, especialmente aqueles que lidam com o público, como os motoristas de bonde.

“Algumas pessoas simplesmente pensam de um jeito diferente e expressam essa diferença de uma forma que simplesmente não é aceitável”, disse Schultheiss.

Quando soube da formação cívica oferecida pelo Business Council for Democracy, ela se candidatou para participar.

“Temos que criar um espaço onde todos os funcionários se sintam confortáveis e promover um ambiente de trabalho onde possam funcionar e trabalhar bem, onde não sejam assediados por ninguém por causa de suas opiniões políticas”, disse Schultheiss.

As oportunidades de treinamento variam. Na Alemanha, a alfabetização midiática tem sido uma questão crucial. Já nos Estados Unidos, os programas muitas vezes se concentram em ensinar aos funcionários como funciona o governo e os direitos de voto. Mas a premissa básica é capacitar os funcionários para compreenderem como as ações deles, tanto dentro quanto fora do local de trabalho, afetam o clima político e, em última análise, seus próprios empregos.

Na Nomos Glashütte, fabricante de relógios de luxo com sede na Saxônia, os líderes da empresa temem que, se a AfD chegar ao poder, clientes e potenciais funcionários possam ser repelidos, ameaçando os negócios.

“A democracia é a base da nossa atividade empresarial”, disse Judith Borowski, diretora-gerente da Nomos, que oferece aos funcionários workshops sobre educação cívica. “E se não tivermos mais democracia, então a base para as nossas atividades empresariais também ficará muito restringida”.

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O efeito ‘Ah...’

A ideia por trás dos workshops do Business Council for Democracy é preencher lacunas no conhecimento dos funcionários sobre os fundamentos básicos do sistema democrático, especialmente na cultura cívica digital. Os programas ensinam como reconhecer e questionar desinformação e teorias da conspiração, com o objetivo de reforçar a responsabilidade pessoal e a resiliência contra conteúdos polarizadores.

O debate é parte essencial do programa e todos os workshops são estritamente confidenciais. O que é dito na sala fica na sala, para promover um espaço onde as pessoas possam ser abertas e vulneráveis. Alguns são presenciais, mas a maioria é online, o que é mais fácil para quem trabalha em turnos.

As sessões acontecem uma vez por semana ao longo de oito semanas, durante o horário de trabalho. Um mediador treinado traz um tópico para discussão. No caso do reconhecimento de desinformação, o mediador mostra exemplos de comentários ou imagens que circularam nas redes sociais.

Por exemplo, durante a pandemia, ainda em 2020, quando os lockdowns governamentais impediram os alemães de socializarem e as festividades de fim de ano foram canceladas, começou a circular uma fotografia mostrando vários políticos proeminentes ombro a ombro, sorrindo e partilhando canecas de vinho quente com especiarias, com comentários expressando a ideia de que aqueles que faziam as regras podiam quebrá-las, mas as outras pessoas, não.

Depois de debater sobre a imagem, os participantes aprenderam a verificar sua data. No caso dos políticos em festa, a foto era de 2019, ano anterior à pandemia.

“Para a formação, utilizamos exemplos muito concretos para deixar realmente claro o que está acontecendo”, disse Susann Planert, especialista em políticas de pessoal da Leipziger, que foi formada para liderar os workshops.

Outro exemplo que ela gosta de usar é pegar a imagem de um artigo de um dos principais meios de comunicação do país e abri-la com uma ferramenta digital que permite ao usuário alterar o texto da manchete. A captura de tela da nova versão, com o título alterado para ser ultrajante ou inflamatório, pode ser rapidamente postada nas redes sociais.

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“Esse artifício técnico tem um impacto enorme”, disse ela. “Cada vez que faço isso numa sessão de treinamento, vejo um efeito ‘ah...’, porque fica óbvio como é fácil manipular informações”.

Investindo na segurança futura

A falta de compreensão cívica entre os funcionários vem chamando a atenção de empresas tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos.

Na Alemanha, o problema é particularmente agudo nas antigas regiões da Alemanha Oriental, onde a democracia só existe desde a reunificação da Alemanha, em 1990. Nos Estados Unidos, as pesquisas apontam para um declínio da compreensão cívica entre os adultos. Ambas as situações se traduzem em debate mais raso e menos confiança nas instituições públicas.

Os empregadores estão percebendo que podem ter um papel essencial para preencher lacunas de informação. De acordo com o Pew Research Center, apenas 17% dos americanos confiam que as autoridades em Washington fazem a coisa certa. Mas as empresas são vistas como a única instituição ética e competente, de acordo com a pesquisa de confiança Edelman.

Muitos jovens agora esperam que os empregadores defendam causas cívicas, disse Steven Levine, diretor da Civic Alliance, uma coligação apartidária de mais de 1.300 empresas nos Estados Unidos, entre elas Microsoft, McDonald’s, Target e Ecolab.

“Nos últimos anos, as empresas têm se visto como uma importante força estabilizadora coletiva, ajudando a garantir que as normas da democracia sejam respeitadas”, disse Levine. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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