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Opinião|Governabilidade baseada em emendas

Os pagadores de impostos brasileiros não aguentarão por muito tempo a distribuição de bilhão a cada votação importante no Congresso

Recentemente, o governo federal bateu seu recorde e liberou o pagamento, em um único dia, de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares. A autorização foi dada no dia 30 de maio, quando deputados se preparavam para votar a medida provisória (MP) dos Ministérios, uma das propostas mais importantes para o Executivo no ano. A prática brasileira de liberação de emendas em troca de apoio político transborda as fronteiras de um ou outro governo. Virou política de Estado: presidentes passam, a relação antirrepublicana entre os Poderes fica.

Só as emendas de relator movimentaram R$ 50 bilhões entre 2019 e 2022, num processo que permitia que parlamentares destinassem recursos para seus Estados e municípios sem vinculá-los a projetos ou atividades específicas. Foi por serem identificadas apenas pelo nome do relator geral do Orçamento, e esconder o real requerente dos recursos, que ficaram conhecidas como orçamento secreto.

No início de maio, ainda sem implementar medidas de transparência, o presidente Lula mandou que fossem pagos R$ 9 bilhões em emendas de relator penduradas pela gestão anterior. Na eleição presidencial passada, elas se tornaram tema central. Popularmente conhecidas como orçamento secreto, elas viraram “a maior bandidagem já feita em 200 anos de República”, nas palavras do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro dizia ser coisa do Congresso e que, se tivesse escolha, preferiria ter os bilhões em suas mãos, para que o Poder que chefiava pudesse gastá-los.

No final de maio, enquanto parlamentares de preparavam para votar a proposta do governo para um novo arcabouço fiscal, o governo liberou mais de R$ 1 bilhão em emendas, também em um único dia. A transferência do poder de decisão sobre o destino das verbas públicas do governo federal para deputados e senadores cresceu significativamente na última década. Entre 2017 e 2022, a participação das emendas parlamentares no valor total das despesas discricionárias da União quase sextuplicou.

Num estudo realizado no ano passado para o Instituto Millenium, o economista Marcos Mendes mostrou que a centralidade do Poder Legislativo brasileiro na execução orçamentária exorbita em muito a prática observada em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por aqui, as emendas parlamentares representam 24% do montante reservado às despesas discricionárias do governo federal. Diferentemente do Brasil, nos outros 29 países avaliados, em apenas três países se ultrapassava a marca de 2%.

O empoderamento do Legislativo levou parte das decisões para o outro lado da Praça dos Três Poderes e enfraqueceu a mão do Executivo nas negociações com os parlamentares. A tendência iniciada em 2015, com o estabelecimento da cota mínima de 1,2% da receita líquida da União para emendas impositivas individuais, foi seguida pela obrigatoriedade de execução também das emendas individuais, e pela possibilidade de destinação direta dos recursos aos Estados e municípios, com discricionariedade completa para seu uso.

Embora os defensores dessa prática argumentem que ela permite aos parlamentares atenderem necessidades específicas de suas bases eleitorais, é importante considerar as implicações dessa tendência para a eficiência do gasto público e para a governabilidade do País. A fragmentação desses gastos e a falta de transparência podem levar a uma má alocação de recursos e a uma fiscalização inadequada. A pulverização compromete também a qualidade do investimento público. Em vez de financiar projetos de grande impacto ou que beneficiem uma região estendida, os recursos acabam destinados a projetos menores e de interesse localizado.

Além disso, a crescente dependência dos municípios em relação às emendas parlamentares pode levar a uma distribuição desigual dos recursos, beneficiando principalmente os municípios apadrinhados por parlamentares influentes. A prática também garante aos políticos incumbentes uma vantagem desproporcional sobre seus adversários, quebra a impessoalidade na ação do poder público e sobrepõe a política às análises técnicas, negligenciando áreas mal representadas politicamente ou representadas por um opositor.

Na falta de uma política baseada em ideias e de bancadas parlamentares ideologicamente coesas, a governabilidade seguirá sendo perseguida por meio de emendas. Mas, a cada ciclo de negociação, a conversa se torna mais dura, com custos cada vez mais elevados. A melhoria do processo orçamentário é uma tarefa complexa que requer equilíbrio entre os interesses regionais, a autonomia local, a eficiência e a transparência. A expansão desenfreada do valor das emendas parlamentares pode levar a uma má gestão dos recursos públicos e a uma maior instabilidade política, mas, se casada com a perda da transparência, ela se torna ameaça real à democracia.

Quando o Legislativo ganha relevância no balanço do poder e a realização do programa do Executivo passa a requerer negociações antirrepublicanas, é necessária uma pactuação entre os Poderes em favor de uma agenda mínima. Os pagadores de impostos brasileiros não aguentarão por muito tempo a distribuição de bilhão a cada votação importante.

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CIENTISTA POLÍTICO, É DIRETOR EXECUTIVO DO LIVRES

Opinião por Magno Karl