A implementação do juiz das garantias (JG) no sistema de justiça está de volta ao cenário jurídico nacional, depois da suspensão parcial dos efeitos da Lei n.º 13.964/19 pelo ministro Luiz Fux no início de 2020. Desde então, a comunidade jurídica aguardava o julgamento de ações envolvendo o tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o qual foi finalmente iniciado no dia 14/6, estando ainda em andamento. A fim de contribuir com a compreensão do tema, apresenta-se, a seguir, uma das fontes teóricas comprobatórias da contaminação inconsciente do julgador que atua na fase investigatória, hipótese que justifica a necessidade do JG.
A Teoria da Dissonância Cognitiva é, essencialmente, um estudo acerca do comportamento humano. Fundada na premissa de que o indivíduo tende sempre a buscar um estado de coerência entre suas cognições (opiniões, crenças e atitudes), desenvolve-se no sentido de comprovar que há um processo involuntário, por isso inevitável, para manter essa “consonância”, admitidas naturais exceções. O âmago da teoria pode ser sintetizado da seguinte forma: 1) existindo dissonância cognitiva, haverá também uma pressão involuntária e automática para reduzi-la; e 2) quando há essa dissonância, além da busca pela sua redução, há também um processo de evitação ativa de contato com situações que possam aumentá-la.
Sem adentrar em tais processos voltados à retomada da consonância cognitiva quando presente a dissonância, o que particularmente interessa ao JG são dois contextos nos quais a dissonância se manifesta inevitavelmente, quais sejam: a tomada de decisões e o contato com informações que ponham em xeque a primeira impressão fixada sobre alguém.
No que diz respeito ao primeiro, relacionado à tendência confirmatória das decisões, isso ocorre em razão de o próprio ato decisório ser fonte de dissonância, na medida em que dificilmente não haverá nenhum elemento cognitivo favorável à decisão que se deixou de tomar, o qual não desaparecerá com a decisão em sentido contrário. Assim, presente a incoerência entre a decisão tomada e o conhecimento desprezado que sustentava outra, os processos cognitivo-comportamentais involuntariamente desencadeados atuarão a favor da confirmação dessa decisão continuamente, a fim de eliminar a inconsistência formada pela cognição rejeitada e restaurar o equilíbrio psíquico rompido.
Entre as pesquisas realizadas para testar a hipótese, merece destaque a de Ehrlich, Guttman, Schönbach e Mills, realizada na década de 50. Nela foram analisadas as reações pós-aquisição de sujeitos que possuíam cognições favoráveis a dois veículos automotores diferentes e tiveram de optar por um deles. Os resultados obtidos demonstraram que, após a tomada da decisão, os compradores passavam a se interessar mais por anúncios que exploravam as qualidades do carro que tinham comprado, de forma a maximizarem a opção escolhida em detrimento da outra, reduzindo-se a dissonância produzida pelos elementos cognitivos favoráveis ao veículo deixado de lado, reforçando a tese de que há um verdadeiro compromisso psicológico com as decisões que se toma.
No que se refere ao segundo, alusivo à preponderância da primeira impressão, isso ocorre pelo fato de a primeira impressão sobre alguém ser responsável pela produção da única cognição a respeito daquela pessoa naquele momento, restando às demais impressões (fontes de cognições posteriores) a tendência de adequação às primeiras, sob pena de produzirem dissonância. Tal conclusão, fonte do jargão popular de que “a primeira impressão é a que fica”, também pode ser encontrada nos estudos sobre percepção de pessoas, no chamado “efeito primazia”, que revela que as informações posteriores a respeito de um indivíduo são, em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida, sendo esta, então, a responsável pelo direcionamento da cognição formada a respeito da pessoa.
Para confirmar a hipótese, Kelley conduziu uma interessante pesquisa com estudantes de Psicologia. Antes de ouvirem um conferencista, duas classes ouviram uma breve apresentação sobre ele, na qual lhes descreveram-no como sendo uma pessoa bastante fria, empreendedora, crítica, prática e decidida (turma A), e uma pessoa muito afetuosa, empreendedora, crítica, prática e decidida (turma B). Após a conferência (idêntica em ambas as classes), todos os estudantes tiveram de escrever uma redação expressando suas impressões acerca do conferencista. Como era de esperar, o resultado demonstrou que a turma B (cuja descrição falava em “muito afetuoso”, no lugar de “bastante frio”) revelou significativamente mais impressões favoráveis do que a turma A, concluindo-se que “os estudantes que tinham formado uma impressão preliminar do conferencista a partir da preleção introdutória manifestaram a tendência de avaliar-lhe o comportamento real à luz dessa impressão inicial”.
Considerando que as decisões tomadas nas investigações criminais contra uma pessoa investigada podem vincular psiquicamente seu responsável por prazo indeterminado, bem como que a primeira impressão recebida pelo juiz sobre o fato a ser julgado é produto dessa investigação policial parcial, é factível esperar da autoridade judiciária que participou dessa primeira fase que se mantenha imparcial no futuro processo? Não é.
Em resposta, portanto, ao ceticismo dos adeptos ao fetiche racionalista da psiquê humana, que alegam não haver suporte teórico para a afirmação de que o juiz que atua na investigação está contaminado psiquicamente para julgar o processo, sendo imprescindível o JG, uma única pergunta: quais são os dados empíricos que sustentam a blindagem psíquica dos juízes, que não sofrem tais efeitos psicológicos inerentes à condição humana?
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ADVOGADO CRIMINALISTA, DOUTORANDO E MESTRE EM CIÊNCIAS CRIMINAIS PELA PUC/RS, É AUTOR DO LIVRO ‘IMPARCIALIDADE NO PROCESSO PENAL: REFLEXÕES A PARTIR DA TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA’. E-MAIL: RUIZ@RITTERLINHARES.COM.BR