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Opinião|Novo foco para a EDH no Brasil: enfrentar a radicalização de extrema direita

A Educação em Direitos Humanos deve ser acrescida de uma dimensão de reconhecimento, prevenção e desconstrução de mentalidades radicalizadas ou em processo de radicalização

A Educação em Direitos Humanos (EDH), no Brasil e no restante da América Latina, é um movimento político, teórico e de prática pedagógica que surge e se desenvolve como forma de oposição aos regimes autoritários da segunda metade do século 20. No caso brasileiro, o movimento pela EDH cresce em tamanho e relevância em meados dos anos 80, no período de redemocratização. De lá para cá, vivenciamos o fortalecimento da EDH de forma institucional a partir dos anos 2000, com a criação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003, 2006), das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012) e de alguns planos estaduais de EDH. De 2015 em diante, porém, observamos o declínio dessas conquistas.

Nos últimos anos, a desestruturação da EDH em nível nacional e estadual avançou a passos largos. Não à toa, em 2020 a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (movimento nacional responsável pelos avanços ocorridos a partir dos anos 2000, criada em 1996, porém sem atuação no período recente) viu a necessidade de retomar suas atividades com o intuito de reativar o movimento pela EDH no País.

O foco da EDH sempre foi a criação de uma cultura de respeito aos direitos humanos. A partir desta primeira base, a EDH se desdobra em três frentes: a transmissão de conhecimentos sobre direitos humanos; o desenvolvimento de habilidades e atitudes de respeito aos direitos humanos; e a apreensão de valores coerentes com os direitos humanos e com o respeito à dignidade humana.

De forma resumida, é importante que as pessoas saibam o que são direitos humanos, quais são seus próprios direitos e por que eles são importantes. Como ensina Nancy Flowers, importante consultora de EDH estadunidense, a ideia é de que, assim como lemos, escrevemos e fazemos as operações matemáticas, saibamos quais são nossos direitos humanos.

Além disso, Flowers defende que é igualmente importante que sejamos capazes de reconhecer as diferenças e aceitá-las, de estabelecer relações com afetos positivos, e não opressivos, e de resolver conflitos de forma não violenta. E, ainda, quanto à apreensão de valores, é preciso ir além do que é palpável e adentrar esferas morais e afetivas que formam todos os seres humanos.

Destacam-se, então, dois âmbitos nos quais a EDH transita: um cognitivo e outro que se vincula a um campo afetivo. O primeiro está relacionado ao aprender sobre direitos humanos, o segundo é mais amplo e implica ser educado com direitos humanos para agir de acordo e em prol dos direitos humanos.

É sobretudo a preocupação com este âmbito afetivo, que vem sendo paulatinamente angariado por movimentos reacionários e antidemocráticos, que provoca a escrita deste texto. O que proponho é, em certo sentido, atrair o olhar de quem se preocupa com a EDH brasileira para um alvo específico: a radicalização de extrema direita.

Por radicalização, quero dizer o processo de adesão ou cooptação de um indivíduo a ideias de caráter extremista. Por extremismo, refiro-me às crenças e ações de indivíduos que fazem uso ou endossam a violência como forma de alcançar objetivos ideológicos, religiosos ou políticos (como ensinado pela professora da Universidade de Columbia Felisa Tibbitts). Soma-se a isso o fato de que, em grande parte, essas ideias são construídas sem lastro na realidade, isto é, envoltas de mentiras, informações falsas e teorias da conspiração.

Em 2015, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) já havia levantado essa problemática, expressando preocupação “com o aumento do terrorismo e do extremismo violento que pode conduzir ao terrorismo, e o desafio mundial de recrutamento e radicalização para o extremismo violento de jovens na mídia, nas comunidades e nas escolas”. Na ocasião, também foi destacado o papel da educação em direitos humanos no combate a esse problema.

De 2015 até hoje, o extremismo e a radicalização se intensificaram no Brasil. Em contrapartida, a EDH vem sendo desmantelada institucionalmente tanto em nível federal quanto nos Estados. Como mostram o Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil, publicado neste ano pelo Instituto Aurora, e a pesquisa de Fernanda Calderaro, de 2018, nos últimos anos vimos a descontinuidade de diversos comitês estaduais de EDH e, notadamente em 2019, a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação (MEC) – responsável pela EDH –, do Pacto Universitário para a Educação em Direitos Humanos (lançado em 2017 também pelo MEC) e do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Com isso, a política de EDH foi retirada do âmbito da educação e colocada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, um dos ministérios mais radicalizados pelo reacionarismo.

Nos debates sobre a radicalização, a Unesco elenca como valores fundamentais para a prevenção do extremismo violento a solidariedade, o respeito pela diversidade, os direitos humanos e a convivência. São valores também centrais para a prática da EDH e que, quando colocados diante do cenário apresentado acima, levam-nos a crer que a EDH tem papel central no combate a esse retrocesso.

É certo que a criação de uma cultura de direitos humanos implica frear o processo de radicalização de indivíduos ainda não cooptados e resgatar aqueles que já se encontram imersos nesses contextos. Por isso é importante reconhecer que há hoje atores propagando ideias racistas, radicalmente individualistas, misóginas e que exaltam a violência em nosso país.

O que proponho, na realidade, é simplesmente evidenciar esse fenômeno. Não há dúvidas de que a EDH desde sempre lidou com o reacionarismo, com ideias antidemocráticas e preconceituosas. Mas a radicalização na segunda década do século 21 tem novas facetas impossíveis de serem ignoradas e que só podem ser vencidas se enfrentadas diretamente. Em razão disso, a EDH deve assumir a tarefa de prover a sociedade com conhecimentos para enfrentar a gradual radicalização da população e também atuar na desradicalização. Para isso, é preciso conhecer os símbolos, a linguagem, os tipos de discursos, as estratégias e os canais de atuação da extrema direita.

Casos como o ataque à escola em Suzano e as variadas manifestações de apologia ao nazismo, amparadas na defesa de uma pretensa liberdade abstrata, são exemplos de aonde a radicalização pode nos levar. Por isso, educadoras e educadores devem estar capacitados para reconhecer situações em que os limites do razoável e da dignidade são ultrapassados e para confrontar esse tipo de expressão de maneira efetiva.

Entendo que o ponto de partida é a consciência de que o que está em curso é a formação de subjetividades, que, como explica Renato Levin Borges, pesquisador do tema, agora ocorre por meio da internet e dos memes e que hoje atende a uma agenda da extrema direita. A radicalização é resultado, entre outros elementos, de ambientes virtuais tóxicos que propagam uma ideologia paranoica e violenta.

O problema é relativamente novo, pois, nos anos 90, período de desenvolvimento da EDH brasileira, não havia uma ferramenta como a internet atuando nessa formação das identidades. Mesmo nos anos 2000, momento de consolidação da EDH no Brasil, o acesso aos meios digitais era bastante restrito. O contexto agora é outro e é preciso atualizar a teoria e as práticas da educação em direitos humanos.

A EDH como educação sobre, com e para os direitos humanos permanece fundamental, mas deve ser acrescida de uma dimensão de reconhecimento, prevenção e desconstrução de mentalidades radicalizadas ou em processo de radicalização. É preciso conhecer os chans (fóruns virtuais anônimos; alguns são reconhecidamente espaços de disseminação de ideais extremistas), a manosfera (grupos online formados por homens que propagam ideias misóginas e reivindicam a recuperação de uma masculinidade perdida em razão das conquistas feministas), os símbolos e códigos. É preciso saber o que se passa nos grupos de WhatsApp e Telegram. É preciso ter ciência de fenômenos como o olavismo, o revisionismo histórico, e de estratégias discursivas como a janela de Overton (utilizada para pautar o debate público com temas até então restritos, como explicado pela pesquisadora Michele Prado).

Sem deixar de lado a compreensão dos desafios dos direitos humanos no Brasil – a pobreza, a desigualdade, a fome, a falta de moradia, o racismo estrutural, o ataque aos povos indígenas, a LGBTQ+fobia, o machismo, entre tantos outros –, a EDH deve agora se ocupar ativamente também da radicalização. Racismo, machismo e outras formas de preconceito, assim como o individualismo exacerbado, não podem ser pensados apenas como resquícios de uma cultura escravocrata, patriarcal e elitista. Essas ideias são hoje intencionalmente difundidas, e por isso devem ser combatidas, como mencionei, ativamente.

Professoras e professores, pais e mães, educadores e educadoras sociais, a mídia e membros do poder público (sistemas de justiça, educação e segurança) devem promover o respeito aos direitos humanos e serem capazes de reconhecer manifestações de teor extremista. Combater tais ideias não é simples, por isso é urgente criar materiais, realizar formações e fortalecer as redes de apoio aos educadores e educadoras que enfrentam tais situações.

Faço este apelo para que todas as pessoas preocupadas com a educação em direitos humanos informem-se e prestem atenção a esse fenômeno e, também, para que as instituições públicas e organizações da sociedade civil que trabalham com EDH, dentro ou fora da educação formal, coloquem esta pauta em seus projetos, ações e estratégias.

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DOUTORANDO EM FILOSOFIA NA LINHA ÉTICA E POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR), É GESTOR DE PESQUISA E PROJETOS NO INSTITUTO AURORA PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Opinião por André Bakker da Silveira