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Opinião|O Direito num ano de conflitos internacionais

Conhecer, debater e não esquecer são ações essenciais das dinâmicas internacionais capazes de dissipar os efeitos de conflitos que emergem em todos os continentes

Por Lucas Carlos Lima

Em novembro de 2023, a Corte Internacional de Justiça emitiu uma ordem cautelar no caso movido por Canadá e Países Baixos contra a Síria envolvendo a Convenção contra a Tortura de 1984. Em síntese, a Corte de Haia ordenou que a Síria tomasse todas as medidas ao seu alcance para impedir que atos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes ocorressem em seu território.

Apesar de o Brasil ter acolhido um número significativo de refugiados oriundos do conflito na Síria, não lemos diariamente nos jornais sobre o que acontece no país. Outros conflitos parecem atrair a atenção e torna-se quase impossível acompanhar os desenvolvimentos de todos acuradamente.

Num dia, milícias houthis iniciam um novo conflito no Mar Vermelho. Em carta à ONU, o Irã acusa os Estados Unidos de violarem a soberania do Iêmen por abuso do direito do uso da força, ao mesmo tempo em que conduz operações militares no território de outros Estados com o mesmo argumento. Fora dos holofotes, a situação da Ucrânia reacende o debate quando se discute sua entrada numa titubeante União Europeia. O conflito em Gaza entre Israel e Hamas chama a atenção tanto por sua violência quanto por sua capacidade de divisão e polarização no interior das sociedades – nunca antes um processo judicial na Corte de Haia chamou tanta atenção. A Coreia do Norte reaparece nas manchetes com sua retórica nuclearmente belicista. Por que não se fala mais da sangrenta guerra civil no Sudão, da guerra no Tigré ou do que ocorre no Afeganistão?

Não é arriscado concluir que 2024 será um ano marcado por conflitos internacionais – como foi 2023. A saída fácil de alguns analistas tem sido culpar a inércia internacional e suas instituições. Contudo, espinafrar levianamente o Conselho de Segurança da ONU é moda desde sua criação. Em verdade, por vezes se colhe a impressão de que só deposita desproporcional esperança em certas instituições internacionais quem não conhece seu procedimento e sua história, tampouco as dinâmicas de força e poder inerentes ao seu funcionamento. É claro que o discurso público exige essa crítica, mas ela parece limitar-se a somente parte dos argumentos que estão em jogo.

Uma leitura pessimista do mundo sugeriria que os conflitos internacionais deixam o mundo menos seguro e nunca se viveu uma situação em que a ordem internacional fosse ameaçada por tantos pontos focais de instabilidade – que trazem consigo, como lúgubre consequência, desastres humanitários que levarão gerações para se estabilizarem. Nesse caso, as potências hegemônicas estariam falhando em garantir a ordem internacional que pactuaram em 1945 e o acordo deveria ser revisitado.

Uma leitura menos pessimista permitiria tirar outras lições da realidade. Em primeiro lugar, ainda existem fóruns internacionais para discutir violações. A opinião pública encontra diferentes espaços para articular-se e tentar exercer algum tipo de pressão, e aquilo que Estados fazem em seus territórios passam por escrutínio internacional. O exemplo da Síria parece importante nesse sentido. Não esquecer. Não permitir que violações ao Direito sejam dissipadas pelo tempo. Não permitir que as regras que estão na base da ordem internacional sejam tingidas em aquarelas pastéis.

No passado, as expectativas de solução de conflitos eram depositadas em líderes mundiais capazes de mediar situações, condenar violações e articular ações que pudessem cessar os graves desrespeitos ao Direito Internacional. Ao mesmo tempo, o mundo mudou desde o fim da guerra fria e novas dinâmicas impõem restrições à ação internacional. As sociedades são, por diferentes razões, mais divididas. Lideranças precisam atender a suas divisões domésticas, e a política externa não é certamente uma prioridade para Estados extremamente divididos.

Por consequência, a expectativa é de que os Estados agirão para proteger o mínimo, sem arriscar grandes ações que possam envolver compromissos orçamentários com política externa. Aqui, a leitura pessimista leva a melhor – embora existam exemplos contrários.

Há quase cem anos, o jurista Clóvis Beviláqua dizia que a partir de uma decisão de uma corte de Justiça uma nação seria moralmente privada de motivos para fazer guerra. O Direito e as instituições representam, ainda que parcial e contingencialmente, o vetor moral idealizado por Beviláqua. Que as ações jurídicas possam eliminar uma percepção inevitavelmente pessimista. As lideranças, as instituições e o Direito devem ser relembrados ainda que com fins simbólicos. Conhecer, debater e não esquecer são ações essenciais das dinâmicas internacionais capazes de, cedo ou tarde, dissipar os efeitos de conflitos que emergem em todos os continentes. Os extremos dificilmente se tocam na busca de soluções para graves crises.

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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, É COORDENADOR DO GRUPO DE PESQUISA EM CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS CNPQ/UFMG

Opinião por Lucas Carlos Lima

Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, é coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.