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Opinião|Passarinhos, ações afirmativas e universidades

Essas ações não levam à divisão e ao ressentimento. Quem faz isso é o racismo, e a História nos ensina que ele não só divide, mas mata e faz sofrer

Por Monica Abrantes Galindo e Leonardo Lemos

Uma história – de cujo autor infelizmente não nos lembramos – conta sobre um passarinho que, preso numa gaiola, se debatia contra ela até sangrar, e alguns observadores da luta do passarinho e de sua ferocidade exclamavam: “Que passarinho violento!”.

É sabido que tivemos no Brasil leis que tiraram a possibilidade de alguns grupos participarem do desenvolvimento do País de maneira muito direta, com particular atenção às medidas legais adotadas entre 1831 e 1930. Tais políticas disciplinaram o acesso à renda, à educação, à saúde, ao território e ao poder político, com marcadores étnico-raciais que criaram um círculo de privilégios ao lado de um círculo de vulnerabilidades. Essas leis e ações premeditadas tiveram como um dos resultados a não representatividade da população negra nos espaços de maior prestígio da nossa sociedade – população esta que, segundo os dados do Censo passado, são mais da metade da população brasileira.

Nesse sentido, não existe discriminação às avessas, porque os espaços de decisão estão nas mãos daquelas e daqueles que não tiveram, no passado, a negação da sua condição humana, não só por meio da morte, mas também do aniquilamento de sua história, seu conhecimento, sua cultura e suas possibilidades de desenvolvimento.

Não podemos ignorar o fato de que quase 70% do tempo de nossa história como Brasil tenha ocorrido com a escravização da população negra. E que tivemos uma suposta abolição do sistema escravista incompleta, visto que as condições mínimas para o desenvolvimento da população supostamente libertada nunca foram organizadas e elaboradas dignamente pelas instituições de e do Estado brasileiro com o sentido de reparação pelos danos causados e crimes cometidos.

As leis não cancelam as práticas dos racismos estrutural e sistêmico, mas podem contribuir para corrigir assimetrias históricas e diminuir privilégios antigos, como mostram exemplos de outros países.

Os mais de cem anos de produção científica sobre o tema das relações étnico-raciais não deixam dúvidas sobre o papel do racismo na fundação, estruturação e replicação da violência racial em todas as instituições tangíveis e intangíveis da sociedade.

As universidades podem e devem ser um vetor do processo de desestruturação do racismo na sociedade, começando por se reinventar e combater os processos que impedem o acesso e o protagonismo de grupos historicamente destituídos de direitos. Numa decisão histórica, a Universidade de São Paulo (USP) adotou uma política de ação afirmativa – reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas – para a contratação de docentes e técnicos administrativos. Esse exemplo deve ser replicado, como ensina a boa ciência, nas demais universidades públicas que ainda não adotaram esse sistema. Nesse sentido, há que cumprimentar discentes, docentes e servidores técnico-administrativos da USP por essa iniciativa.

As ações afirmativas não são desperdício de dinheiro público. Mau uso do dinheiro público é quando ele é utilizado sistematicamente com menos da metade da população. Não são, também, uma decisão equivocada. Decisão equivocada é não fazer nada diante dos dados objetivos que mostram que a universidade pública não tem tido em seus quadros profissionais uma representatividade correta da nossa população.

Ações afirmativas não são “achismos”, são, por definição e origem, políticas públicas de natureza diferente daquela das que permitiram que o que chamamos de racismo institucional, estrutural e sistêmico tenha se fortalecido. Como políticas públicas, sempre podem e devem ser aperfeiçoadas, assim como todos os processos a elas relacionados, como, por exemplo, os processos de averiguação ou heteroidentificação.

Ações afirmativas não tornam as disputas por vagas injustas, não impedem a contratação dos melhores docentes e técnicos, não desprezam os méritos acadêmicos e não desperdiçam talentos. Quem faz isso é o racismo que tira da concorrência mais da metade da população que também tem excelentes profissionais e cidadãos e cidadãs que têm direito de concorrer com justiça e usufruir dos bens comuns da sociedade. Ações afirmativas ampliam a possibilidade de o mérito acadêmico ser visto em grupos nos quais ele tem sido sistemática e historicamente apagado, revelando quem são os qualificados nos grupos que, por preconceito e princípio, são tratados como desqualificados.

Ações afirmativas não incutem na cabeça das pessoas que diferenças físicas têm importância ou determinam o caráter ou o potencial de aprendizagem ou competência profissional. Quem faz isso é o racismo. As ações afirmativas revelam que em todos os grupos há competências e possibilidades, assim como incompetências variadas.

Ações afirmativas não levam à divisão e ao ressentimento. Quem faz isso é o racismo, e a História nos ensina que ele não só divide, mas mata e faz sofrer.

Em tempo: sobre o passarinho da história, infelizmente, ainda é necessário reafirmar para alguns que violento não é o passarinho preso, violentos são a gaiola e quem o colocou lá dentro.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA ASSISTENTE DA UNESP EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO, COORDENADORA DO NÚCLEO NEGRO PARA PESQUISA E EXTENSÃO DA UNESP (NUPE); E PROFESSOR ASSOCIADO DA UNESP EM ASSIS, COORDENADOR DA COORDENADORIA DE AÇÕES AFIRMATIVAS, DIVERSIDADE E EQUIDADE (CAADI)

Opinião por Monica Abrantes Galindo

Professora assistente da Unesp em São José do Rio Preto, é coordenadora do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão da Unesp (Nupe)

Leonardo Lemos

Professor associado da Unesp em Assis, é coordenador da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Caadi)

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