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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em busca de equilíbrio

Afirmações de Lula e de Flávio Dino expressam a dificuldade que a política externa do Brasil tem tido de se equilibrar na nova balança do poder global

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No mesmo momento em que relembramos os 50 anos do golpe que derrubou a democracia no Chile (1973), provocando a morte de seu presidente, Salvador Allende, e abrindo um ciclo de horrores, torturas e violências, é paradoxal que o governo brasileiro – nas pessoas de Lula e do ministro da Justiça, Flávio Dino – levante suspeitas sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Depois de Lula declarar em 11/9 que desconhecia a existência do TPI e não cumpriria a ordem de prisão de Vladimir Putin, presidente da Rússia, o ministro Flávio Dino não só endossou a posição do presidente, como foi além, acrescentando que o governo brasileiro pode rever a adesão àquele tribunal, que, em sua opinião, funciona de modo “desequilibrado” porque não é endossado por países como Estados Unidos, Rússia e China. Disse o ministro: “O TPI é de algumas nações, e não de todas, e é esse o alerta que o presidente fez, no sentido da necessidade de haver igualdade entre os países. Ou seja: ou todos aderem ou não faz sentido um tribunal que seja para julgar apenas uns, e não outros”.

É interessante recordar que o ditador chileno Augusto Pinochet esteve no centro do processo que levou à criação do TPI. Quando foi detido em Londres, em outubro de 1998, Pinochet tornou-se um dos primeiros a ser monitorado pelo tribunal, que fora criado em julho, poucos meses antes de sua prisão. O TPI surgiu como instituição permanente, com jurisdição para investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão de um Estado contra a integridade territorial de outro. Passou a ser formalmente reconhecido na Conferência de Roma (2002) e teve o Brasil como país signatário.

O tribunal é um organismo independente, não atrelado à ONU. Sua criação foi saudada por todos os defensores dos direitos humanos, que viram no TPI uma instância capacitada para processar ações libertárias e emitir ordens de prisão contra criminosos de guerra, torturadores contumazes e ditadores sangrentos. Pela primeira vez na história da humanidade, os países decidiram aceitar a jurisdição de uma corte penal internacional para processar os perpetradores de graves crimes cometidos em seus territórios ou por pessoas de sua nacionalidade.

Especialmente para os países da América do Sul e da África – do hoje tão celebrado Sul Global –, o TPI tem sido de grande importância, pela recorrência naqueles países de regimes autoritários que, com frequência, praticam crimes contra suas populações. Não é razoável que seja questionado justamente agora, e por pessoas que conhecem os fatos e sempre se apresentaram como defensoras das liberdades democráticas.

As afirmações de Lula e, principalmente, de Flávio Dino expressam a dificuldade que a política externa brasileira está tendo de se equilibrar na nova balança do poder global. Revelam um certo açodamento ao procurar servir a vários senhores ao mesmo tempo. É uma orientação que não pode entrar em atrito com Rússia e China, ao mesmo tempo que não pode romper as relações históricas com o mundo ocidental. É um equilíbrio difícil, que necessita de uma política externa bem calibrada.

O bom discurso de Lula na abertura da Assembleia da ONU deixou claro que o governo brasileiro percebe o tamanho do desafio que tem pela frente. Lula foi cauteloso. Trocou o improviso por um discurso bem estruturado, feito sob medida pela diplomacia do Itamaraty. Lula defendeu a democracia, o multilateralismo e a cooperação entre os países. “O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo”, falou com ênfase. E acrescentou: “Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada pelo diálogo respeitoso com todos”.

Embora sem se posicionar com clareza, o presidente foi hábil ao se referir à guerra na Ucrânia, tema no qual tropeçou meses atrás. A declaração de que o conflito “escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU” não hostilizou a Rússia e facilitou a realização de um encontro com o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski. O discurso foi de paz e cooperação, mas não deixou de criticar os Estados Unidos pelo embargo a Cuba (posição tradicional do Brasil) e a facilidade com que se envolvem em guerras alheias.

Também houve um esforço explícito para projetar Lula como líder do Sul Global, tarefa mais complexa, mas que pode render bons frutos fora e dentro do País. O Brasil, afinal, tem muito o que dizer para esta parte do mundo. Não foi por outro motivo que Lula cobrou dos países ricos ajuda concreta para combater a fome, as desigualdades e a crise climática, além de ter defendido reformas na governança global.

Pode não ter fixado todos os alicerces, mas o discurso de Lula reposicionou o Brasil no cenário internacional. Mostrou que há amplo espaço para a vigência de uma política externa equilibrada e propositiva, ajudando a formar consensos de que tanto necessitamos.

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PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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