Do outro lado do mundo, uma lição de simplicidade e qualidade

Do outro lado do mundo, uma lição de simplicidade e qualidade

Publicado por: Ricardo Cesa, da Nova Zelândia Publicado: 05/02/2024 12:14 Visitas: 252 Comentários: 0

Ricardo Cesar, da Nova Zelândia

É curioso atravessar o mundo e ficar feliz ao encontrar um vinho vendido em embalagem longa vida - uma “wine bag in box” - no supermercado. Valeu até uma foto - só faltou fazer uma selfie com a caixinha. Parece estranho, mas me peguei exatamente nessa situação em janeiro, quando visitei a Nova Zelândia.

Não fui até lá para olhar bebida em caixa, claro. Fui de férias com a família. Sempre encontro um jeito de colocar vinho na programação, portanto visitei algumas vinícolas e provei coisas ótimas (outras nem tanto). Volto a isso no fim do texto. Mas, mesmo fora da agenda oficial enófila, também tenho o hábito de observar a relação das pessoas com o vinho em diferentes lugares. E foi isso que colocou um sorriso no meu rosto naquele supermercado.

 

Com mais de 700 vinícolas, o vinho é o sexto produto mais exportado da Nova Zelândia

A Nova Zelândia tem uma maneira deliciosamente despretensiosa de encarar os vinhos. Relaxada, ou laid-back, como dizem por lá. Tomar vinho não é esnobe, não é chique, não é um acontecimento especial, não gera status. É apenas natural, simples e gostoso.

Eu já vinha formando essa percepção nos primeiros dias no país. Aquela wine in box em Raglan, uma cidadezinha de praia e ponto de surfistas na Ilha Norte, foi uma espécie de confirmação. Sim, esses caras curtem vinho. E curtem sem frescura.

Você pode chamar isso de cultura do vinho. Quanto mais arraigada e disseminada essa bebida em uma população, menos esnobe ela se torna. É um hábito que está no cotidiano. Um marco civilizatório.

Trata-se de um baita contraste com o que vemos em grande parte do Brasil, onde muitas vezes o vinho ainda tem um ar de coisa solene, bebida de rico ou para ocasiões especiais. Não precisa ser isso. Ou pelo menos não só isso.

Foram duas semanas na Nova Zelândia, e em várias situações o vinho se incorporava ao cenário sem chamar atenção. Nas mesas dos restaurantes simples, nas prateleiras dos mercadinhos, até em um pesque-e-pague em que alguns grupos de pescadores confraternizavam na cantina com chope – e outros com vinho em taça servido ao lado das chopeiras e fazendo o mesmo sucesso (ou mais)

 

 

Bag in box em supermercado: só faltou fazer uma selfie com a caixinha

Essa cultura não é privilégio da Nova Zelândia – o país sequer está entre os maiores exemplos disso, possivelmente. Na verdade, o vinho é algo recente por lá – de certa forma como tudo o mais que deriva da cultura europeia ou ocidental, já que estamos falando do chamado Novíssimo Mundo.

Os primeiros registros de plantações de uvas viníferas da Nova Zelândia datam de 1819. Colonos e padres disseminaram as parreiras no país ao longo do século XIX, mas o consumo e comercialização de produtos locais eram bastante limitados. Isso começou a mudar durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram implementadas barreiras tarifárias contra vinhos importados. A expansão continuou nas décadas de 50, 60 e 70 com uma série de leis que beneficiou o setor (como mais licenças para que comércios e restaurantes vendessem vinhos) e com a subsequente entrada de investimentos estrangeiros, sobretudo de empresas da Austrália e dos Estados Unidos.

Foi apenas na década de 80 que os rótulos neozelandeses se tornaram amplamente disponíveis no país; e somente nos anos 90 que alguns exemplares locais de sauvignon blanc, e depois de pinot noir e outras castas, começaram a ganhar reconhecimento no mercado internacional. O Cloudy Bay se tornou um vinho-símbolo desse momento e é uma referência local. 

Com mais de 700 vinícolas ativas, o fermentado de uvas é o sexto produto mais importante na pauta de exportação do país. O consumo per capita de vinho na Nova Zelândia foi de 8.3 litros por ano em 2023.

Isso é o triplo do que se consome no Brasil e também bem acima da média mundial, mas parece um número abstêmio perto do que se pratica em países como Portugal – que chega a superar os 50 litros anuais per capita em alguns anos -, França e Itália (na casa dos 40 litros) e mesmo do que a vizinha Austrália (acima de 20 litros) ou, para ficar mais perto de nós, da Argentina (também na faixa dos 20 litros).

Vários desses países, aliás, oferecem ótimos exemplos dessa cultura do vinho. Nos restaurantes argentinos, uma taça de vinho é uma opção padrão nos menus executivos de segunda a segunda. Em algumas partes da França, é tradicional que as famílias comemorem o nascimento de um novo membro com uma garrafa de champagne – e que a celebração inclua até o recém-nascido, que tem os lábios umedecidos por uma pequena gota numa espécie de batismo de álcool. Ainda na França, a chegada de uma safra de Beaujolais nouveau é comemorada com os vinhos simples e frescos sendo bebidos nas calçadas. No interior da Itália, vinho diluído com água começa a ser oferecido aos jovens muito cedo.

O que me chamou a atenção na Nova Zelândia é como eles desenvolveram essa cultura tão bem e tão rapidamente. Será que um dia isso acontece por aqui?

Agora, vamos ao que provei por lá.

Inicialmente conhecida por seus aromáticos sauvignon blanc, hoje a Nova Zelândia produz “de um tudo”. Há imensa preocupação com práticas de manejo sustentável e integração com a natureza (não só no vinho – o país está de parabéns no quesito sustentabilidade).

Da Ilha Norte saem excelentes cortes bordaleses (blends de cabernet sauvignon, merlot, cabernet franc). Os vinhos da Te Mata estão entre os melhores e entregam muito em todas as faixas de preço. Há também ótimos syrah e chardonnay. Nas frias montanhas da Ilha Sul brilham mais as variedades brancas – incluindo riesling e pinot grigio – e a pinot noir.

Tive pequenas amostras de alta qualidade em cada canto do país. Na paradisíaca ilha Waiheke, que fica a meia hora de balsa da Auckland, o ponto alto da minha visita foi a Stonyridge, vinícola fundada pelo aventureiro Stephen White, que voltou para sua terra natal depois de navegar pelo mundo e participar da World Yatch Race. Já interessado no tema, ele havia feito trabalhos menos nobres em vinícolas na California, França e Itália. Em 1982 White plantou suas primeiras vinhas em uma encosta com exposição norte. Em 1987 ele criou o Larose, um corte bordalês que rapidamente conquistou status de ícone local. Provei o Larose 2021, que, embora jovem, já mostrava todo seu potencial. Os rótulos mais simples da vinícola também são muito recomendados.

Também perto de Auckland, mas em outra região, fica a Kumeu River, que ganhou fama internacional pelos chardonnay elegantes – o que se confirmou na taça. Seus produtos mais premium apresentam sempre uma madeira bem dosada e fruta limpa, cristalina, com toques de maçã e cremosidade na boca.

 

Kumeu River: fama internacional pelos chardonnay elegantes

Já na Ilha Sul, o destaque foi a lindíssima vinícola Rippon, situada em uma encosta de frente ao lago Wanaka, com os alpes neozelandeses ao fundo (foto). Há bons brancos e rosés, mas as estrelas são mesmo os pinot noirs, muito elegantes, meio “old-school” no bom sentido - lembram Borgonhas em estilo clássico, mas qualquer francês raiz também identificaria, ao mesmo tempo, um “je ne sais quoi” que é o terroir do local cantando na taça e que torna esses pinots tão distintos.

Por um desencontro – leia-se desorganização minha -, não pude ir à Prophet´s Rock, outra vinícola de perfil boutique encravada nas montanhas frias da região de Central Otago, há 45 minutos da Rippon. Mas o simpático enólogo Paul Pujol me deu algumas dicas por email. Comprei e provei alguns vinhos, todos muito bons. O mais barato deles, um pinot grigio com um toque de açúcar residual em estilo que lembra alguns bons exemplares da Alsácia (onde Pujol trabalhou), é encantador. O riesling é um dos melhores da Nova Zelândia e o Chardonnay Aux Antipodes – um topo de linha que na safra 2020 ganhou 97 pontos da Wine Advocate de Robert Parker – é elétrico, mineral e com camadas de frutas brancas e cítricas. 

 

Prophet´s Rock: rótulos indicados pelo enólogo Paul Pujol

Os vinhos da Nova Zelândia parecem acertar bem mais do que errar, mas há tropeços também. Talvez eu devesse ter desconfiado quando o atendente da loja me ofereceu aquela garrafa pesada e com um rótulo de gosto duvidoso. Era um Terra Sancta Special Release 2022. Comprei desconfiado o “melhor rosé da Nova Zelândia”, como me foi prometido. E meus instintos estavam certos: a pretensão não estava apenas na garrafa, mas também na maneira de fazer, passando 17 meses em barrica – algo incomum para rosés. Muita pompa, mas na boca mostrou-se pesadão e meio enjoativo.

Sem chegar a deixar uma impressão tão ruim, os espumantes também não conseguiram gerar entusiasmo. Tanto o Cremant blanc de blanc da Kumeu River como o Cuvée Reine que experimentei tem qualidades, podem ser bebidos com prazer, mas não são excelentes. Acredito, contudo, que é questão de tempo até surgirem espumantes superiores por lá.

No Brasil a oferta de vinhos da Nova Zelândia é limitada, embora vários dos produtores que eu mencionei acima tenham representantes aqui (Te Mata – MistralRippon e Stonyridge – Premium; Cloudy Bay – LVMH). Refletindo isso, o Guia dos Vinhos traz apenas dois exemplares de lá: o Hunter's Stoneburn Pinot Noir 2021 e o Palliser Pencarrow Sauvignon Blanc 2021 (veja abaixo), ambos com respeitáveis 90 pontos.

Vale buscar e experimentar os vinhos neozelandeses. Mas vale, sobretudo, aprender a beber vinho como eles. Importamos poucos rótulos da Nova Zelândia, mas poderíamos – ao menos – importar sua cultura de simplicidade, prazer e alegria ao saborear uma taça com os amigos. Mesmo que seja de uma reles bag in box.

 

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