A primeira adega

A primeira adega

Publicado por: Ricardo Cesar Publicado: 01/03/2024 12:15 Visitas: 1290 Comentários: 0

Cedo ou tarde, quem gosta de vinhos vai se deparar com a questão: vale a pena ter uma adega?

O roteiro que leva a essa pergunta – quase existencial, digamos - é conhecido. A pessoa começa com algumas garrafas guardadas em algum armário na cozinha ou na sala de jantar. À medida que passa a consumir mais informações, cresce a vontade de comprar e experimentar rótulos diferentes. Viagens para regiões produtoras resultarão em malas cheias de lembranças, sobretudo se isso incluir um tour por vinícolas. Quem sabe um curso de degustação amplie ainda mais o interesse no tema. Logo a família e os amigos perceberão que vinho é sempre um bom presente em qualquer ocasião.

Daí a surgirem algumas garrafas mais especiais, que merecem ser armazenadas com esmero, é um passo – um passo pequeno, aliás. 

Pronto. Talvez antes mesmo que metade dessas coisas tenham acontecido o novo enófilo estará pesquisando preços e modelos de adega. E – sim – vale a pena ter uma adega para a maioria das pessoas que realmente se apaixona por esse universo. 

Há muitos vinhos que se beneficiam de alguns anos de guarda sob condições adequadas, que podemos resumir em temperatura amena e constante, pouca luminosidade e bom índice de humidade. Isso faz com que o líquido se conserve por mais tempo e evolua, ou amadureça, nas melhores condições, amaciando os taninos e revelando novos aromas e sabores mais complexos que podem advir da guarda.


Adega de um restaurante de Cascais, Portugal

Alguns vinhos, inclusive, chegam a ser difíceis de apreciar muito jovens – são tânicos e “fechados” - e precisam de alguns anos de vida antes de realmente propiciarem uma experiência prazerosa. Garrafas armazenadas longe das condições ideais, contudo, tendem a envelhecer mal e podem apresentar problemas como a oxidação prematura.

Por outro lado, uma adega não é de fato necessária para rótulos do dia-a-dia que serão consumidos em poucas semanas ou meses depois da compra. Além disso, muitos vinhos devem ser bebidos jovens, quando exibem mais fruta e frescor, e não ganharão nada com o envelhecimento. Isso é verdade para a maioria dos brancos mais simples, mas também para muitos tintos. Uma adega, portanto, só faz realmente sentido para produtos um pouco mais especiais, aqueles xodós que você quer guardar para uma ocasião especial.

Convencer-se de que ter um lugar apropriado de guarda pode ser interessante é o ponto de partida. Mas as perguntas que se seguem são igualmente importantes: que tipo de adega devo ter? E qual a melhor maneira de preenchê-la? São boas indagações e, em ambos os casos, as respostas dependem do perfil e da realidade de cada consumidor.

Vamos começar com o tipo de adega. Essas mais comuns, que parecem um frigobar ou uma geladeirinha, podem ser bastante boas e adequadas ao enófilo iniciante, porém apresentam um problema: o tamanho. Como se sabe, não há ninguém mais fanático que um recém-convertido. As primeiras 12 garrafas logo viram 24, 36, 48... Cansei de ver amigos comprando pequenas adegas para um ano depois procurar outra três ou quatro vezes maior. Nesse departamento, costumo dizer que ninguém erra para mais, só para menos. Mas de qualquer forma, estas adegas refrigeradas são uma mão na roda para manter as garrafas na temperatura adequada, prontas para serem servidas, mesmo as de safras mais recentes.

A outra opção é adaptar e condicionar um cômodo não ocupado – um quarto ou “quartinho de tralhas”, por exemplo. É a melhor alternativa para quem realmente sentiu que a paixão por vinhos veio para ficar, mas, obviamente, muito pouca gente tem espaço sobrando para esse luxo. Quem tem uma chácara pode conseguir isso com mais facilidade sem sacrificar preciosos metros quadrados em sua casa ou apartamento de moradia (geralmente em uma grande cidade).


Em adegas maiores é comum ter várias garrafas do mesmo vinho

Também é possível simplesmente escolher o local mais escuro, fresco e longe de contato com comidas, materiais de limpeza e quaisquer produtos com cheiro forte, e deixar ali as garrafas -- sabendo, contudo, que seu tempo de vida será encurtado e que essa não é a melhor opção para o longuíssimo prazo.

Há, por fim, alternativas híbridas, tais como ter uma adega menor para as garrafas mais importantes – aquelas para ocasiões especiais – e guardar as do dia-a-dia em um lugar que não seja refrigerado. Ou ter uma adega maior numa chácara e uma menor no apartamento na cidade grande.

Não há certo ou errado: cada um deve procurar a solução que fizer sentido para seu bolso, seu espaço, sua paixão, seu perfil de consumo e sua vontade de colecionar garrafas. Mas adegas – sejam em estilo geladeira ou espaços climatizados – são certamente a melhor maneira de envelhecer bons vinhos por longos anos.

Escolhida a alternativa, vamos ao que mais interessa: o que por ali. O impulso natural pode ser preencher seu estoque com o tipo de vinho que mais lhe agrada. É evidente que isso deve ser respeitado. Contudo, recomendo aos enófilos iniciantes que tentem ir um pouco além.

A diversidade é um dos aspectos mais fascinantes do mundo dos vinhos. Há estilos para todas as ocasiões e para qualquer comida. A tendência dos brasileiros é rechear a adega de tintos da Argentina e do Chile -- e ponto final. Não tenho nada contra isso, mas tenho bastante contra ser SÓ isso.

A diversidade começa pelos tipos de vinho. E nesse aspecto os brancos estão em alta. Além de serem ótimas opções para o calor – que predomina na maior parte do Brasil -, os brancos muitas vezes são mais fáceis de combinar com comida do que os tintos. É muito raro um chardonnay ou sauvignon blanc estragar um prato, ainda que a harmonização não seja ideal. Mas experimente tomar um syrah ou malbec encorpado com qualquer comida delicada e você não conseguirá sentir o gosto do que está mastigando.

Temos ainda os espumantes, os de colheita tardia, os fortificados (secos e doces), os laranjas e os roses. Uma adega deveria refletir pelo menos parcialmente essa variedade, ainda que em proporções diferentes dependendo do gosto pessoal de cada um.

Recomendo também diversificar a procedência. Considerando a disponibilidade e custo, faz sentido que muitas adegas brasileiras sejam dominadas por vinhos da América do Sul. De novo: não há nenhum problema nisso – atualmente há ótimas opções no Brasil, Chile, Argentina e Uruguai -, mas você vai se divertir mais se ampliar os horizontes e variar a origem geográfica também. Um bom riesling alemão aqui, um porto ou jerez ali, um tinto de Rioja ou do Piemonte acolá. 

Por fim, para montar uma adega, é importante observar o tempo de vida estimada dos vinhos. Os fortificados costumam durar muito, até mesmo quando a condição de conservação não é ideal. Os brancos geralmente são mais delicados e menos longevos (mas há muitas exceções).

Como última dica, diria para deixar algum espaço para apostas que você quer ver como amadurecerão por pura curiosidade. Em adegas maiores é comum ter várias garrafas do mesmo vinho, o que permite checar de tempos em tempos como o produto está evoluindo (um amigo costuma dizer que “quem tem uma não tem nenhuma” – um exagero e uma ironia, claro, mas o ponto é que quando você abrir uma garrafa e constatar que está evoluindo muito bem e que deve estar espetacular daqui, digamos, cinco anos... será grande o benefício de ter outra para provar no futuro)

Se você comprou uma primeira adeguinha de 12 lugares, veja uma sugestão de “line up” – apenas uma possibilidade dentre muitas – com rótulos avaliados aqui pelo Guia dos Vinhos:

  • Schloss Lieser Riesling trocken 2020 - Um vinho branco especial, proveniente de um vinhedo selecionado (grand cru) da região de Mosel. Nariz sofisticado e intenso com notas de pão tostado, defumado, pedra de isqueiro, geleia de limão. Na boca seco, sápido, fresco, cítrico. Saboroso, longo, intrigante.

  • Zind-Humbrecht Riesling Roche Roulee 2019 - Ótima introdução ao que a Alsácia pode proporcionar – que não é pouca coisa -, esse branco traz um nariz com lima, pedra molhada, mineral e uma sutil fruta de caroço fresca e branca. A boca não decepciona, com umami, uma sensação de salgado e ácido, final longo e elegante.

  • Chateau Haut Bom Fils Blanc 2020 - Um bordeaux branco bastante fácil de se beber. A sauvignon blanc aparece de forma mais comportada e contida que no novo mundo, com toques cítricos, grama e pimenta verde. Tem boa vivacidade na boca e frescor. Simples, direto e correto.

  • Casa da Passarella A Descoberta Colheita 2021 - Um branco de grande complexidade e sutilezas. Aromas em camadas de flor seca, pão tostado, fruta de caroço fresca. Boca com bom volume e certa untuosidade, notam-se os cítricos, a fruta de caroço, flores secas, pedra molhada, encaixadas em boa acidez.

  • Château Pavie Esprit de Pavie 2015 Terceiro vinho do conceituado Chateau Pavie, de Bordeaux, esse rótulo mostra que a região não é conhecida por seus vinhos de guarda à toa. Uma muralha de frutas negras, chocolate, café verde e taninos sugere que a qualidade está lá, mas que a paciência é a chave para ser recompensado aqui.

  • Pizzato Concentus Gran Reserva 2021 - Não é para os fracos, mas é um acerto da vinícola dentro do estilo “pé na porta”. Impressiona com sua profusão de frutas negras, licor de cassis, café de torra escura e cacau. A fruta aparece bem integrada à madeira, os taninos estão na medida e o frescor equilibra o conjunto.

  • Weinert Carrascal Corte Tinto 2019 (duas garrafas)Uma unanimidade de pontuação do Guia dos Vinhos. Camadas de aromas de frutas vermelhas e negras, tabaco, flores e folhas secas, terroso. Frutas se alargam em boca, com um tanino firme, macio, ótima acidez e madeira (francesa, 24 meses!) muito bem integrada.

  • Mazzei Fortior Vino Rosso D'Italia 2020 - A elegância dá as cartas aqui, Com um visual rubi claro, os aramos desse vinho lembram erva-doce, alcaçuz e charuto, tudo embalado por um folral delicado. No paladar sobressaem as frutas vermelhas frescas e um toque de couro, Taninos macios e sem arestas.

  • Penedo Borges Cepas Cabernet Franc 2021 - Bom exemplo da aposta argentina na cabernet franc. Notas de frutas negras, como ameixas e cerejas maduras, um toque mentolado. No palada, tem taninos finos, sem arestas, potente, mas fresco.

  • Quinta do Crasto Douro Rosé 2021 Feito com 85% de touriga nacional, o estilo floral se impõe neste rosé, dando feição alegre e primaveril ao conjunto. Completam o nariz toques de pêssego e framboesa. Na boca tem acidez gostosa, que faz chamar o próximo gole. Ótimo acerto entre frescor, corpo e precisão dos aromas.

  • Perelada Cava Stars Brut Reserva 2020 - O cava Stars foi criado para um festival de música no castelo do produtor Parelada. Destaque para frutas e flores brancas de caroço nos aromas e para a boa cremosidade que remetem a frutos secos como amêndoas e pistache. Final longo e limpo.

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