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A deficiência motora fez de mim um escritor desconhecido

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Por Emílio Figueira
Atualização:
Emílio Figueira. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Nas décadas 1980 e 1990, lutávamos para que as pessoas com deficiência tivessem uma imagem normalizada, nem de coitadinhos nem de super-heróis. Discutíamos sim, nosso lugar e direitos na sociedade, mas sem esconder os prejuízos e dificuldades que uma deficiência pode trazer. Agora na atualidade vejo que cada vez mais se luta para construir, principalmente em algumas mídias e nas redes sociais, a imagem das pessoas com deficiência empoderadas, bem-sucedidas, com muitos direitos e vitórias. Isso maquia também os deveres e obrigações que essas pessoas têm e impede as discussões mais profundas sobre os obstáculos e as perdas que as deficiências trazem e como amenizá-los. Levantando também a questão da importância da convivência social.

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Em julho de 2020, durante minha entrevista à coluna Primeira Pessoa da Revista Veja, a repórter me perguntou se a minha deficiência me prejudicou em algo em minha vida pessoal ou carreira profissional. Embora eu tenha dado uma resposta simples à ela, foi o momento que comecei a refletir sobre isto. Após várias autorreflexões autuais, hoje não me omito em reconhecer que, mesmo com toda minha caminhada, conquistas e produção, minha deficiência me trouxe várias barreiras profissionais. E estou aberto em falar sobre isto.

Agora, quando recentemente foi lançado o documentário "Digitando Com Um Dedo", ao rever toda minha trajetória e produção no mundo da Inclusão, aumentei essa reflexão. Isto porque, após cursar três faculdades seis pós-graduações, escrever mais de quinhentos textos para a imprensa, publicar quase que de forma alternativa perto de cem livros entre científicos e ficções variadas, escrever algumas coisas para o teatro e roteiro para cinema, cheguei a esta conclusão:

Sim, a deficiência motora fez de mim um escritor desconhecido!

Mesmo chegando a quarenta anos de carreira e tendo uma grande produção escrita, por ter paralisia cerebral, eu mais vivi isolado em casa produzindo. Ou como eu já disse em outros escritos, simbolicamente, sempre vivi em uma "eterna prisão sem grades" como muitas pessoas com deficiência.

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Antigamente eu não ligava por aparecer enquanto pessoa; estar nos bastidores da vida, era como estar acomodado em uma zona de conforto. Aliás, o fato de viver isolado foi o que me proporcionou longos tempos para estudar, ler, produzir muitas e variadas obras. Todas minhas publicações eram apenas o nome "Emílio Figueira" impresso em jornais, revistas, sites e capas de livros, sem um rosto ou uma pessoa física por trás falando por eles.

Com isso, não pude conviver com outros profissionais da minha área, ficar conhecido enquanto pessoa. Os editores das grandes editoras nem imaginam que eu existo. Não consegui contratos de publicações com elas, ter equipes editoriais para ajudar me na produção de nível, divulgação de minhas obras, o que me liberaria só para escrever, criar tantos enredos que tenho em mente. Coisas que até hoje tenho que fazer sozinho, paralelo à minha escrita e me tomam muito tempo por ser um autor alternativo, o que me levou a ter que estudar editoriação, artes gráficas para produzir e lançar minhas próprias obras.

A deficiência motora não me permitiu a frequentar e ter amigos nas rodas literárias, Academias de Letras, trocar ideias, opiniões de textos, livros, incentivos mútuos. Nunca fui convidado para participar de Bienais ou Feiras de Livros; nem mesmo pelas editoras que já me publicaram.

Não pude conviver com jornalistas, tanto no trabalho, quanto em bate-papos de botecos ou restaurantes. Frequentar redações de jornais, revistas e sites. Minha dificuldade de fala me impediu de dar entrevistas em rádios, televisões, pois já houve produtores que cancelaram minha participação quando ficaram sabendo da minha dificuldade de fala. Tenho mais dificuldades para gravar muitos mais vídeos para internet por ter que gastar muito mais tempo para legendá-los.

Não me permitiu ser uma figura no mundo cênico. Frequentar as coxias de inúmeras montagens de peças teatrais, musicais. Ser amigo de atrizes, atores, dramaturgos, diretores, produtores, pessoal técnico; o que me impediu de viver realmente esse universo, mostrar a eles minha dramaturgia, ter meus textos montados. Não pude frequentar bastidores de emissoras, conhecer os comunicadores, produtoras cinematográficas, a turma do mundo audiovisual, ter abertura e me reafirmar enquanto roteirista.

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Por isto, sou seguro em reafirmar: Sim, a deficiência motora fez de mim um escritor desconhecido!

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Ao passar dos cinquenta anos, vejo que isso me impediu de alcançar mais posições em minha carreira, o que eu achava que aconteceria naturalmente. Só que minha obra ficou conhecida em alguns poucos segmentos, principalmente no campo da Educação. A pessoa por traz dela não. Minha deficiência não me permitiu a fazer netword, pitch ao longo dos anos.

Sinto isto hoje, porque, mesmo com toda a obra que já produzi, há uns três anos tento uma vaga de cronista ou colunista em algum grande jornal ou site (meu grande sonho de infância!). Só que sou totalmente desconhecido deles e nem se quer consigo uma oportunidade nas redações para falar sobre isso.

Ter chances em me apresentar à uma grande editora, desenvolver um trabalho literário de alto nível então, nem pensar; se envio uma carta ou e-mail (comunicação que está ao meu alcance), a um agente literário ou editor, nem resposta recebo. Afinal, para eles que não me conhecem e convivem comigo, sou apenas mais um na multidão.

A psicóloga Suely Harumi Satow, em seu livro "Paralisado Cerebral: Construção Da Identidade Na Exclusão", fruto de sua tese de doutorado em psicologia na PUC-SP em 1994, afirma que nós, paralisados cerebrais, construímos nossas identidades silenciosamente excluídos. Levei quase quarenta anos para perceber que o meu caso não foi diferente!

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O importante agora é que, psicologicamente, tenho a consciência que preciso trabalhar minha imagem enquanto escritor.  Ao mesmo tempo em que estou revisitando, revisando e "´plantando" no mundo digital toda a minha literatura produzida a que passou despercebida ao longo dessas décadas por minha imagem ter estado fortemente ligada ao mundo da inclusão e na militância pelas pessoas com deficiência.

Se tem algo que aprendi com tudo isso e continuo acreditando, é que a deficiência pode limitar nossos aspectos físicos. Mas nunca limitará nossas capacidades humanas e criatividades artísticas.

*Emílio Figueira é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor, é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de 90 títulos lançados. Com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a educação inclusiva. Atualmente dedica-se a escrever roteiros e projetos audiovisuais

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