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Opinião|Almas generosas

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convidado
Por José Renato Nalini
Atualização:

Tia Theolinda era uma figura ilustre na segunda metade do século XIX. Morava com a irmã, Sinhazinha, num casarão senhorial à rua 15 de Novembro, cujos largos portões indicavam que por ali passavam carruagens. Imenso pomar atrás e jardim à frente. Algo inimaginável para aquilo em que se transformou a provinciana São Paulo.

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No primeiro andar havia enorme salão que dava para a rua com inúmeras sacadas. Era ali que os amigos assistiam às procissões e aos préstitos carnavalescos. Dessas sacadas os amigos das duas irmãs também presenciaram a chegada de Santos Dumont e o desfile do Presidente Prudente de Morais.

Cada irmã possuía um quarto, com mobiliário pesado, de jacarandá e muitas imagens barrocas. No lado interno, correspondendo ao salão, a grandiosa sala de jantar, com trinta e seis lugares e as paredes com pinturas representando as fábulas de La Fontaine.

Na extremidade do andar superior, uma dependência misteriosa, sempre fechada. Pela porta envidraçada era possível entrever uma parede azul, estrelada de prata. Era o oratório da família.

As duas remanescentes possuíam razoável fortuna. Resolveram criar alguns órfãos que cresceram, se casaram, fizeram prole e todo o conjunto residia no casarão, só que a ocupar a parte térrea.

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Tia Theodolinda era muito tímida e pouco afeiçoada ao controle financeiro. Foi confiando a administração da casa àqueles verdadeiros “filhos de criação”. De quando em vez, um pouco aflita, indagava a algum amigo mais próximo o que fazer para proteger o seu patrimônio. Embora aconselhada a recorrer a um advogado, vencia a argumentação daqueles adultos que ela criara praticamente como filhos.

Sinhazinha morreu antes de Theodolinda. Ela, mais idosa, acreditou na promessa de demolição do solar para a construção de um edifício do qual ela usufruiria de um apartamento e, vinte e cinco anos depois, adquiriria a propriedade de todo o prédio. Resta claro que ela não tinha mais vinte e cinco anos para viver.

Uma última visita que a afilhada lhe fez, já no apartamento, constatou o vazio daquele cômodo. Não mais o mobiliário de jacarandá. Não mais os santos barrocos. Nenhuma pintura, nenhum ornamento. Tudo “clean”, para não dizer despido de qualquer coisa que lembrasse requinte ou luxo.

Tia Theodolinda já estava de cama, sem ter alguém que cuidasse dela. Contente com a visita, pediu à afilhada: “Vá até à sala de jantar e apanhe um dos paliteiros de prata que eu quero oferecer a você!”.

A beneficiária dessa lembrança atendeu ao pedido e foi em direção ao que seria a “sala de jantar”. O apartamento minúsculo, verdadeiro flat ou studio de hoje, não dispunha de sala de jantar. Nem existia mais um sequer, da preciosa coleção de paliteiros de prata, ingleses e portugueses, que enfeitavam a imensa vitrine do solar originário.

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A afilhada disfarçou, para não desapontar a madrinha.

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Tia Theodolinda foi enterrada na sepultura da irmã. Foi a afilhada quem encomendou uma lápide com seu nome, pois os filhos de criação não gastaram com ela um tostão, além do enterro de categoria indigente.

Essas “almas generosas” existem sempre, independentemente das épocas. Pessoas sozinhas são alvo de insuspeitos interesseiros que se aproximam, conquistam os vulneráveis e, habilmente, se encarregam de se apossar do patrimônio dos incautos.

Por isso é que se mostra conveniente fazer um testamento. Dispor de seus bens para que não haja surpresas quando da partida. Doar, sim, mas com reserva de usufruto. Doar sob condição. Pois descumprida a condição, esse ato generoso e geralmente gratuito pode ser desfeito.

A ingratidão é uma conduta costumeira na espécie humana, que se autodefine como racional, mas que não raro se porta como ave de rapina, a mirar com exatidão o alvo e a mergulhar nele sem dó, nem piedade.

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Os que não têm herdeiro, mas são titulares de herança, bem fariam se procurassem o seu advogado ou o seu tabelião de confiança, para o aconselhamento que garanta ao menos não ser objeto de cobiça impiedosa, pois o repertório das maldades é manancial infindável de episódios quão dolorosos quão lastimáveis. Pois a cada gesto ingrato, reduz-se a confiança no princípio da perfectibilidade e ratifica-se a sensação de que o projeto humano é um verdadeiro fracasso.

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras
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