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Cracolândias: enfrentar sem esmorecer

Por Eloisa de Sousa Arruda
Atualização:
Eloisa de Sousa Arruda. FOTO: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

Na São Paulo das muitas cracolândias, onde é fácil conseguir droga, ressurge a pretensão, anunciada pelo Prefeito Ricardo Nunes (MDB), de promover-se a internação compulsória de pessoas que usam crack há mais de cinco anos nesses conglomerados. Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo (14/01/2023), o Município vai trabalhar em conjunto com o governo estadual para oferecer o atendimento aos dependentes químicos.

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A ideia não é nova, basta dizer que em fevereiro de 2023, completará 10 anos o Programa Recomeço, instituído por meio do Decreto nº 59.164/13, e que foi o resultado de inúmeras ações anteriores, que contaram com a participação e apoio de entes governamentais e não governamentais.

Peço licença para o relato, por vezes, na primeira pessoa, mas trata-se de minha experiência para que o referido Programa Recomeço fosse implantado.

Quando assumi o cargo de Secretária Estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania, em janeiro de 2011, analisando as atribuições da pasta, verifiquei que não constava nenhuma específica para coordenar as políticas públicas de atenção a dependentes químicos e seus familiares, a despeito de se tratar de secretaria intimamente ligada à proteção dos direitos humanos no Estado de São Paulo. Havia apenas um Conselho de Políticas sobre Drogas (CONED) que não possuía competência executiva para o desenvolvimento de projetos e ações sobre o tema.

Considerei este vazio no mínimo preocupante, posto que na região central da cidade de São Paulo estava (e ainda está) instalada a maior "cracolândia" do país. Levei esta percepção ao então Governador Geraldo Alckmin, somada à reivindicação do CONED, para a criação de uma coordenação específica para lidar a questão da drogadição. A concordância do governador foi imediata, sendo que já em 8 de junho de 2011 foi criada a Coordenação Estadual de Políticas sobre Drogas (COED).

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Das muitas reuniões promovidas na SJDC envolvendo entidades governamentais e sociedade civil, um ponto era consenso: algo precisava ser feito, de forma imediata e séria, para enfrentar o drama das "cracolândias", com uma população vulnerável, em estado doentio, vivendo em condições insalubres e à mercê de traficantes.

A principal demanda em relação àquela população era a disponibilização de tratamento de saúde física e mental. As vagas eram poucas e o atendimento estava relegado, praticamente todo, aos Centros de Atenção Psicossocial -CAPS.

Tendo lidado com o Direito Penal durante toda minha carreira como Promotora de Justiça do Estado de São Paulo e Professora na Faculdade de Direito da PUC-SP, eu conhecia programas bem-sucedidos no âmbito da chamada "justiça terapêutica" que dão a oportunidade à pessoa surpreendida com pequena quantidade de droga ilícita, de não ser processada criminalmente desde que concorde com a proposta de submeter-se a tratamento para a dependência química e/ou de frequentar grupos de ajuda mútua para dependentes químicos.

Além disso, eram do meu conhecimento as possibilidades de internação voluntária, involuntária e compulsória, sempre com a garantia de direitos e amparo na lei de saúde mental em vigor.

Surgiu daí a ideia de concentrarmos todos os atendimentos, médico, jurídico e psicossocial num só local, tendo sido escolhido para o projeto piloto o Centro Referência Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD), local simbólico, dada sua proximidade com a "cracolândia" central.

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Todas as articulações iniciais com os órgãos integrantes do sistema de justiça foram feitas envolvendo TJSP, OAB, MPSP e Defensora Pública Geral. Houve compreensão e concordância no sentido de enviar profissionais para atuar no CRATOD.

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O atendimento inicial no CRATOD nos colocou em situação inesperada. A busca pelo serviço médico e jurídico era muito maior do que prevíamos. As filas de famílias desesperadas implorando por atendimento começaram a se estender pelas ruas do bairro da Luz, o que orientou novas providências.

Precisamos criar um sistema de recepção para classificar o atendimento e foram implantadas o que chamamos de "tendas". Nesse momento passamos a contar com o apoio fundamental da Federação de Amor Exigente que colocou à disposição toda a estrutura de voluntariado da instituição para atender as famílias dos dependentes químicos.

As dificuldades no CRATOD eram diárias, vencidas com dedicação e entusiasmo de todos que lá estavam. O sucesso do serviço foi tão grande que centenas de pessoas se deslocavam do interior e até de outros estados da federação em busca de tratamento para si ou para seus familiares.

Assim, o atendimento do CRATOD partiu para a estruturação de um programa de abrangência estadual, chamado de Programa Recomeço, implantado oficialmente em 2013.

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As situações de atenção a dependentes químicos fora da Capital permaneciam pendentes e a habilitação de entidades espalhadas pelo Estado não se mostrou um processo fácil. Nesse contexto veio a ideia de realizarmos um convênio entre SJDC-FEBRACT (Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas) por ter esta entidade abrangência estadual.

Vieram outros desafios: a porta de saída com a qualificação para o trabalho, a busca de vagas para empregar os dependentes químicos em recuperação, as moradias para aqueles que se encontravam em situação de rua quando ingressaram no programa de tratamento, entre outros.

O projeto do Programa Recomeço expandiu, se fortaleceu. Assim também o Programa Redenção da Prefeitura de São Paulo que possui uma bem-organizada rede de atenção a dependentes químicos. Ou seja, a ideia anunciada pelo Prefeito já tem estrutura de apoio, não parte do zero. Mas será necessário persistência e coragem para enfrentar o drama humano que assola esses espaços de uso a céu aberto e as críticas, na sua maioria por questões ideológicas, que certamente virão. A busca por soluções vem sendo constantemente debatida e criticada enquanto sucessos e fracassos vão sendo experimentados.

Sempre importante esclarecer que as internações compulsória e involuntária estão amparadas pela Lei 13.840/19, que estabeleceu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e definiu as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas. Nela está previsto que o tratamento deverá ser ordenado em uma rede de atenção à saúde, com prioridade para as modalidades de tratamento ambulatorial, incluindo excepcionalmente formas de internação em unidades de saúde.

Sendo necessária a internação, esta poderá ocorrer de forma voluntária, com o consentimento do dependente químico; ou de forma involuntária, sem o consentimento do dependente, mas a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida.

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E temos de frisar que as internações involuntárias objetivam assegurar e garantir os direitos fundamentais à vida, à integridade física do dependente químico e à segurança de todos os cidadãos.

Entidades que prestam apoio a familiares de dependentes químicos, como é o caso de Amor Exigente, tem constatado o aumento de casos de mães aflitas que buscam ajuda para seus filhos que estão mergulhados no submundo das drogas. São histórias dramáticas, que se acentuam em locais de consumo como nas cracolândias.  Essas mães clamam por internação e tratamento dos seus filhos porque já não são capazes de  ampará-los no caminho de saída da dependência química. Este é um caso típico que motiva a internação involuntária.

Mas há também as situações em que as pessoas romperam os laços familiares e estão jogadas nas ruas à própria sorte, sem a possibilidade de decidir com consciência sobre a sua condição de sobrevivência com dignidade. Essa realidade também é comum e escancarada, basta olhar as imagens exibidas com frequência pela imprensa e pelas redes sociais.

Muitos dos usuários que vivem nesses ambientes entram em surto psicótico em face do consumo contínuo e abusivo de drogas. Perdem assim qualquer condição de decidir sobre a submissão aos tratamentos possíveis. Querem continuar usando a droga, mesmo que isso lhes custe a própria vida! Isso sem falar na questão da segurança pública que se agrava dia a dia e gera clamor da população para que o espaço público seja recuperado e as pessoas possam exercer o direito de usufrui-lo com tranquilidade

Diante destes cenários devastadores é que a lei prevê a possibilidade de internação compulsória.

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Ressalte-se, entretanto que esta modalidade de internação será sempre precedida de avaliação médica e da constatada impossibilidade de utilização de alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde devendo perdurar apenas pelo tempo necessário à desintoxicação.

E para que seja fiscalizada a legalidade das internações de dependentes químicos, estas devem ser informadas ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de controle.

A internação nessas hipóteses não impõe violação aos direitos humanos, ao contrário, resguarda-os. Mostram um caminho possível para devolver ao convívio da sociedade aqueles que enfrentam o flagelo da dependência química.

*Eloisa de Sousa Arruda, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP, procuradora de Justiça aposentada, ex-secretária da Justiça e ex-secretária de Direitos Humanos de São Paulo

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