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Opinião|Devaneios de Momo: entre a discricionariedade do gestor e os limites do controle

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convidado
Por Laura Mendes Amando de Barros

O carnaval representa para os brasileiros momento de euforia, de libertação e sublimação, quando os problemas (são tantos) do dia a dia dão uma folga, um respiro.

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São dias intensamente vivenciados (ao menos por grande parte da população), em que as responsabilidades e peso da rotina são momentaneamente deixados de lado.

A estruturação da folia, porém, não pode ser gerida da mesma forma: o lúdico, desprendido, leve e por vezes inconsequentes típicos da festa devem ser reservados tão somente àqueles a que dela se coloquem a usufruir.

Discussão que vem ganhando projeção guarda relação com o dispêndio de valores astronômicos com shows e eventos voltados ao refestelo da população (ou seria mais honesta a referência a eleitores?), com comprometimento dos parcos recursos públicos, cuja grande destinação é a garantia dos direitos fundamentais.

Exemplo paradigmático dessa situação deu-se com a suspensão judicial da contratação, por R$ 1.300.000,00, de show de um famoso cantor sertanejo pela cidade de Campo Alegre de Lourdes, na Bahia, ocasião em que se dariam as comemorações, além do carnaval, do dia da padroeira da cidade.

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A decisão foi liminarmente prolatada em 2 de fevereiro, no âmbito de ação civil pública proposta pelo Ministério Público[1], ao argumento de que a situação de calamidade pública em que inserida o ente[2], cujo orçamento destinado à cultura seria quatro vezes inferior ao cachê do cantor, seria proibitiva da realização do evento.

A grande questão suscitada é: tomada em consideração a premissa de que os integrantes do Executivo foram democraticamente eleitos para representar os interesses do cidadão, desenhar e implementar políticas públicas e tomar as decisões afetas às áreas a serem contempladas com receitas públicas, seria admissível a ingerência dos órgãos de controle sobre tais decisões de fundo?

Ou estaríamos diante de uma tentativa de invasão da esfera de competências próprias do Executivo, em consequente subversão do sistema constitucional de freios e contrapesos?

As discussões acerca da falta de legitimidade democrática dos órgãos de controle – notadamente Ministério Público, Judiciário e Tribunais de Contas – estendem-se há tempos, e ainda geram uma série de perplexidades.

Nesse sentido, pode-se notar a volatilidade da jurisprudência, ora no sentido de admitir a limitação de decisões do Executivo atentatórias ao interesse público, ora de modo a preservar a sua autonomia decisória.

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Precedente de interesse foi a ação civil pública proposta pelo Ministério Público da Bahia com vistas a impedir a realização, pelo município de Teolândia (igualmente em situação de emergência formalmente decretada), da XVI Festa da Banana, pleito acolhido cautelarmente ao fundamento de que “não se pode fechar os olhos para os dados públicos estampados no site do Tribunal de Contas dos Municípios, informando que os investimentos em saúde e educação para todo o ano de 2021 giraram em torno de cinco milhões de reais, constituindo o gasto pretendido para custear as apresentações artísticas da festa de que ora se cuida, em pouco menos de metade desses recursos de investimento essencial em um ano.”

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Tal decisão foi suspensa por ocasião da interposição de recurso ao Tribunal de Justiça daquele Estado (que autorizou a realização do evento), e posteriormente revigorada por determinação do Superior Tribunal de Justiça[3].

Na contramão dessa instabilidade, e com vistas a proporcionar previsibilidade e segurança jurídica (conforme preceitos, inclusive, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), foi editada a Nota Técnica n. 6/2023 pelo Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina[4], voltada justamente à ao estabelecimento de orientações e parâmetros para a contratação de apresentações artísticas.

Estabelece prioridade para a execução das metas do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, entre outras, nas áreas de saúde, educação, saneamento, segurança, assistência social e infraestrutura.

O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, na mesma toada, havia já emitido, em 18 de outubro de 2022, e a partir de recomendação do Ministério Público de Contas, alerta aos seus jurisdicionados[5] de que despesas com shows artísticos, caso venham a comprometer serviços essenciais ou contribuir para o desequilíbrio fiscal, ou na hipótese de encontrar-se o ente em situação de calamidade pública. poderão ser tidas por ilegítimas.

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Trata-se de boas práticas a serem replicadas, inclusive pelos órgãos de controle interno e de representação jurídica – cuja pronta e eficaz atuação são capazes de evitar desvios, prejuízo ao erário, e eventuais frustrações à população em geral e comerciantes locais.

Objetivamente, há que se ter clareza com relação aos contornos da discricionariedade do gestor: ela não é absoluta, encontrando limites nas diretrizes e orientações técnicas e científicas - conforme reiteradamente visto por ocasião da pandemia, em que diversos procedimentos licitatórios e aquisições de medicamentos sem eficácia comprovada foram julgados ilegais ou suspensos pela Justiça.

Mais que isso: deve se dobrar à realidade dos fatos, cuja interpretação não pode ficar ao alvedrio do gestor de ocasião: a partir do momento em que estejam em risco a garantia e satisfação de direitos fundamentais básicos como saúde e educação, inafastável um exercício de ponderação, com definição dos valores a serem prioritariamente garantidos pelos parcos recursos públicos.

E tal análise é marcada por grande carga de objetividade, podendo ser levada a efeito a partir de dados concretos e inescapáveis.

No caso do município baiano em comento, havia sido recentemente avaliado como quinto pior índice da Bahia no que tange à gestão da saúde, educação e saneamento.

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Não menosprezando a importância da cultura e do lazer enquanto direitos fundamentais, inescapável que a garantia de condições mínimas quanto a esses três indicadores (saúde, educação e saneamento) é condicionante do exercício e fruição daquele.

Daí a necessidade de desmistificação dos instrumentos de controle – legais e legítimos – manejados com vistas à revisão, ou extirpação de decisões do Executivo que desbordem de uma análise discricionária, com o comprometimento de valores objetiva e concretamente auferíveis.

Não se trata de órgãos externos definirem e criarem uma escala de prioridades quanto ao atendimento aos direitos fundamentais – missão essa a ser desempenhada pelo Executivo em conjunto do a sociedade civil, grande interessada e, em última análise, maior conhecedora das duas demandas, desafios e necessidades prioritárias.

O mérito das decisões administrativas não pode ser invocado (ainda) como justificativa ao afastamento do controle, da capacidade de exigência de uma ação pública mais eficaz, efetiva, responsiva e, mais importante, dissociada de interesses eleitoreiros potencialmente comprometedores da qualidade de vida do cidadão a longo prazo.

Essa é a premissa a ser – final e urgentemente – assimilada pelo gestor público brasileiro.

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[1] Processo 8000274-28.2024.8.05.0208.

[2] Declarada pelo Decreto 59, de 11 de setembro de 2023, com vigência até março de 2024.

[3] Suspensão de liminar e de sentença n. 3123 - BA (2022/0172196-7).

[4]Disponível em https://www.tcesc.tc.br/sites/default/files/leis_normas/NOTA%20T%C3%89CNICA%20N.%20TC%206-2023%20CONSOLIDADA.pdf.

[5]https://www.tce.sp.gov.br/6524-gasto-com-shows-nao-podem-comprometer-servicos-essenciais-alerta-tcesp.

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Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Laura Mendes Amando de Barros
Doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo
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