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Opinião|Ética, moral e corrupção

Somente com o desenvolvimento de uma cultura de ética poderemos refundar nossa sociedade de uma forma que não esteja vulnerável ao mal da corrupção. A partir do momento em que os agentes públicos e privados realmente adotarem esses valores por convicção as mudanças começarão a ocorrer de forma mais sólida

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convidado
Por Disney Rosseti

É muito comum ouvir que a questão da corrupção em nossa sociedade tem relação com a degradação dos valores morais e éticos. Uma sociedade fundada em valores errados, deturpados, onde as fronteiras do interesse público e do interesse social nem sempre são claras, e na qual se transige com pequenas transgressões e violações de normas, é uma sociedade que tende a ser corrupta.

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Para muitos temos atualmente uma crise de valores éticos e morais. O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz um alerta sobre essa crise, fruto do que ele denomina “Modernidade Líquida”. Para ele isso significa a crescente transformação de cidadão – aquele que busca sua felicidade através da sociedade, busca seu bem estar através do bem estar da sociedade - em indivíduos – aquele que é cético em relação ao bem comum, a sociedade justa. E também o contraponto as estruturas e relações sólidas vigentes até um passado próximo, em termos sociais, profissionais e etc, hoje muito mais relativizadas, com a busca de conexões e laços banais, eventuais, virtuais (Bauman, 2000, pág. 45 e seg.). Isso significa submeter a ética e os valores sociais aos meus valores e a minha ética.

Podemos ver essa crise de valores, sempre aqui numa abordagem sociológica, com o rompimento de conceitos nos quais a sociedade se assentava, sendo relativizados por visões individuais acerca daquele conceito. Como exemplo temos a família, que surge em novas formas, a intimidade, vida privada e liberdade de expressão, que tomam outra dimensão com as redes sociais, os preceitos de bons costumes e comportamento, que passam a sofrer grande contestação, e assim por diante. Vale dizer, esses conceitos se assentavam na visão da sociedade a respeito dos mesmos, calcados em determinados valores tidos como da sociedade, que guiavam o indivíduo, e agora cada indivíduo estabelece e segue sua visão, o que gera uma crise de valores, até que a sociedade estabeleça novos valores como referência ou retorne as referências existentes. É o que o Bauman chama de “derreter os sólidos” (op. cit. pág. 10 e seg.)

Os valores morais e éticos tem uma certa dinâmica, representando as bases da sociedade e o fundamento para edificação do sistema jurídico. Este, por sua vez, acaba sendo uma forma de ordenar a sociedade e servir de controle social, impedindo que cada um siga suas próprias inclinações ou interesses. Como afirmou Kant (Kant, 2003, págs.76 e 77):

O direito é a forma universal de coexistência dos arbítrios simples. Enquanto tal é a condição ou limite da liberdade de cada um, de maneira que todas as liberdades externas possam coexistir segundo uma lei universal. Finalmente o direito é o que possibilita a livre coexistência dos homens, a coexistência em nome da liberdade, porque somente onde a liberdade é limitada, a liberdade de um não se transforma numa não liberdade que lhe é concedida pelo direito de todos os outros, e cada um pode usufruir de uma liberdade igual a dele.

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Para tratar do tema da corrupção e do compliance, especialmente do papel do direito e das normas no enfrentamento e prevenção da corrupção, convém ter a mínima noção sobre a ética e a moral.

Ética e Moral

No ano VI a.c. o estadista ateniense Solón da Grécia estava disposto a perdoar todas as dívidas das pessoas com entes públicos e privados. O nobre propósito era evitar que elas se tornassem escravas caso não honrassem a dívida, como costumes de época. No entanto, antes de aprovar a lei, contou a amigos que, se aproveitando da informação privilegiada, pegaram grandes empréstimos e compraram terras. Após a lei perdoando as dívidas, seus amigos enriqueceram. (Referencial de Combate a Fraude e Corrupção – TCU, 2018, pág.10)

Ética vem do latim ethos – morada, habitat, mas para a filosofia significa o caráter moral, a forma de ser de alguém, índole, natureza. Para Aristóteles se caracteriza pelo fim e objetivo a ser atingido, já para Platão significa a busca da Justiça (Valls, 1994, pág. 20 e seg). Trata de escolhas que fazemos diante das situações da vida. É medida por princípios e valores morais, os quais se alteram ao longo da história em crenças religiosas, metafísicas e posteriormente pelo direito.

Ética e moral não se confundem. A moral, em sua acepção pela cultura romana, consiste no latim mos – costume (plural mores), e tem a ver com as convicções de uma pessoa derivada dos costumes, de seu meio social e também representando escolhas. A ética estuda e critica a moral, refletindo sobre essas regras. Interessa para nosso tema, mais que o naturalismo ou racionalismo grego, a relação de ética e política, pois aqui podemos valorar a conduta de um sujeito e os valores da sociedade (Cunha, 2019).

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Em resumo a ética é uma reflexão sobre a moral, esta por sua vez estabelecida em códigos de conduta de acordo com épocas, sociedades, locais, tribos e assim por diante. Uma ação considerada moral ou imoral pode ser ética ou não, de acordo com essa reflexão. Um código de ética na verdade traz regras morais que pretendem criar uma cultura de ética. Isso é visto claramente em empresas e entidades, sejam públicas ou privadas.

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Emmanuel Kant dizia que o ser humano deve agir “por dever” e não “meramente pelo dever”. Isso significa que uma ação moral é motivada por dever, por aquilo que a razão compreende que é o dever e crê seja o correto, um fim em si mesmo, e não aquela que tem a aparência do dever, tomada com receio das consequências ou sanções que podem advir do ato. Seu exemplo do comerciante que dá o troco correto por dever, e não pelo medo de perder a clientela ou outras consequências nos dá a exata noção de ética em sua concepção (apud Dias, 2018).

No célebre diálogo de Platão intitulado Críton[1], ele relata que Sócrates foi condenado a morte, e diante da proposta de seus amigos de promover uma fuga, subornando inclusive guardas da prisão, ele se recusou ao argumento de que as regras e leis da cidade (polis) devem ser respeitadas, preferindo sofrer uma injustiça que praticar algo injusto.

A par do grau de dificuldade da discussão desse tema, haja vista as peculiaridades históricas, culturais, étnicas, e tantas outras, temos que é possível no atual estágio de nossa sociedade ocidental, especialmente nas democracias, ter um norte e concepções de valores básicos para as sociedades. As modernas constituições fornecem um sólido caminho ao enunciar princípios e valores que inegavelmente devem compor o ordenamento social, como solidariedade, justiça social, respeito a dignidade humana, pluralidade, limites ao Estado, direitos e garantias fundamentais, etc.

Quando nós brasileiros vamos a outros países e nos deparamos com sociedades onde a lei é estritamente cumprida por todos os seus cidadãos no dia-a-dia, nas condutas mais simples, temos um certo choque de realidade. Costumamos nos impressionar com condutas básicas, desde o respeito a um semáforo ou local de travessia de pedestres, ou ver o lixo sendo jogado no lixo, passando pela conduta de agentes públicos no cumprimento do dever, até mesmo nos espantamos por não haver catracas ou cobradores em ônibus ou metrôs, pois cada pessoa compra e valida seu bilhete.

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O que ocorre é um choque de cultura, e neste termo de fato reside a grande questão a ser enfrentada por nossa sociedade. Vemos nessas sociedades um forte substrato de cultura baseada em valores, ou seja, na ética. A percepção é que muito mais que a política e leis mais duras, o que há de verdade nessas sociedades é uma cultura sólida baseada na ética a ser seguida por todos os indivíduos. E a sua valoração de ética trabalha intrinsicamente com valores essenciais e inalienáveis, indispensáveis a essas sociedades, ainda que indivíduos que a ela pertençam possam discordar de alguns desses valores. Nesse sentido não se discute, nessas sociedades, o valor das normas vigentes que condenam e não aceitam a corrupção.

A reportagem abaixo talvez ilustre bem essa situação:

Vida Pública

Comportamento

‘Jeitinho brasileiro’ contradiz indignação popular contra a corrupção no setor público. Milhares vão às ruas protestar contra a corrupção, mas pequenos desvios e desobediências fazem parte do cotidiano do brasileiro

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Por Carolina Pompeo

Sonegar impostos quando as taxas são elevadas é aceitável? E subornar um guarda para escapar de uma multa? O conceito de honestidade é relativo, a depender da situação com a qual se confronta?

Pelo menos um em cada quatro brasileiros diria que sim. Esse tipo de desvio de conduta, cotidiano e dissimulado, que chamamos de “jeitinho brasileiro”, evidencia a contradição entre a indignação popular em relação à corrupção no setor público e a relativização dos pequenos delitos e desobediências.

Duas pesquisas recentes mostram que os brasileiros têm dificuldade para compreender a noção de ética e distinguir o privado e o bem comum, o que pode explicar os dois pesos e duas medidas. O estudo conduzido pela Universidade de Brasília (UNB) revelou que 31% não entende a diferença entre o que é público e o que é privado. Já a pesquisa feita pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) descobriu que o desvio individual não é entendido como corrupção – por isso tanta gente considera sonegar impostos errado, mas não corrupto. https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/jeitinho-brasileiro-contradiz-indignacao-popular-contra-a-corrupcao-no-setor-publico-8c2g3eq27n941x1d6bz85lrsg/

Esta, sem sombra de dúvida, é a grande questão a ser enfrentada por nossa sociedade. Qual a nossa cultura? Ela esta baseada em quais valores? Em que moral nos assentamos? E finalmente qual a nossa ética enquanto indivíduos, sociedade e país? É ético nos rebelarmos contra a corrupção mas transigirmos com pequenos atos que implicam transgressão de norma?

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Nesse contexto tomam vulto a questão da governança e o compliance. Esses institutos já existem e são discutidos e aprimorados em outros países já há algum tempo, tendo especialmente na última década se tornado agenda do dia nas instituições públicas o no meio privado no Brasil.

Para muito além de imporem medidas mais rígidas de transparência, controle, gestão e distribuição de riscos, auditoria, responsabilização de agentes públicos e privados, a governança e o compliance tem o grande objetivo de instituir e fomentar uma cultura de ética e conformidade nas relações público x privada e privada x privada, trazendo os valores da responsabilidade social, da devida compatibilização dos interesses públicos e privados, da supremacia do interesse público, da lealdade, da livre concorrência e fundamentalmente do cumprimento das normas como uma nova forma de se desenvolver essas relações.

Somente com o desenvolvimento de uma cultura de ética poderemos refundar nossa sociedade de uma forma que não esteja vulnerável ao mal da corrupção. A partir do momento em que os agentes públicos e privados realmente adotarem esses valores por convicção as mudanças começarão a ocorrer de forma mais sólida e veremos finalmente as transformações necessárias e vitais para que o nosso Brasil se livre das amarras da corrupção e siga seu natural curso de desenvolvimento e justiça social.

Referências:

Bauman, Z. (2000) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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Kant, Immanuel. A Doutrina do Direito. In: A Metafísica dos Costumes. Trd: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

Dias, M.G. (2018). A Filosofia Moral de Kant. Site Conteúdo Jurídico,

http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51227/a-filosofia-moral-de-Kant

[1] Sócrates, na cadeia, aguarda a execução da sentença condenatória. Enquanto isso, Críton e outros amigos de Sócrates tentaram lhe persuadir para que ele fugisse. Entretanto, Sócrates se manteve firme no seu proceder, afirmando que obedeceria às leis e à cidade, mesmo discordando da justiça da decisão. Críton faz uso de três argumentos para persuadir Sócrates a fugir da cadeia, a saber: primeiro, Sócrates é um amigo sem igual para ele; segundo, a reputação de Críton será maculada, pois o povo comentará que este tinha condições de providenciar a fuga de Sócrates, mas preferiu poupar seu dinheiro em vez de salvar seu amigo; por fim, tendo esposa e filhos para criar e, mesmo assim, escolhendo cumprir a pena de morte quando poderia fugir, Sócrates opta por abandonar sua família. Contra o argumento de que a reputação dos seus amigos será maculada, Sócrates diz que não é a toda opinião que se deve prestar atenção, mas somente à opinião qualificada. Para demonstrar isso, cita o exemplo de um atleta e de seu técnico, em que questiona se, para cuidar do corpo, o atleta deve obedecer ao técnico ou à opinião da multidão. A partir disso, faz uma analogia às leis e à cidade, pois elas representam a opinião qualificada sobre a justiça (mesmo que, aparentemente, injustas) e, se é o corpo do atleta que pagará pela desobediência às ordens do técnico, será a alma de Sócrates que sofrerá os prejuízos do descumprimento das leis humanas no Hades. Além disso, desrespeitar às leis será enfraquecer as instituições da cidade. Sócrates diz que não devemos cometer injustiças voluntariamente nem retribuir a injustiça com a injustiça. Pois não há diferença entre cometer o mal e uma injustiça. Sócrates cria uma ficção, um diálogo seu com as leis e a cidade. São elas que lhe apresentam as decorrências do seu posicionamento (de Sócrates): uma convenção (as leis da cidade) deve ser cumprida, mesmo que injusta; descumprir a lei, mesmo que injusta, é cometer injustiça (e não devemos retribuir a injustiça com outra injustiça). Ao invés da desobediência, quem não estiver satisfeito com as convenções da sua cidade deverá modificá-las através do Direito. Por fim, além da oportunidade de modificar as leis pelo Direito, quem não conseguir fazer isso e ainda estiver em desacordo com elas poderá ir embora da cidade. https://www.conjur.com.br/2019-jan-26/diario-classe-dialogo-criton-platao-arduo-combate-ativismo-judicial

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Disney Rosseti
Delegado de Polícia Federal desde 1999, tendo sido superintendente regional em São Paulo e no Distrito Federal, e diretor executivo da PF. Especialista em Ciências Criminais e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Professor de Compliance, Investigações Internas e Due Diligence. Foto: Arquivo pessoal
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