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Jeitinho, malandragem e corrupção

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Por Rodrigo Augusto Prando
Atualização:
Rodrigo Augusto Prando. Foto: Inac/Divulgação

Em meu último artigo publicado pelo INAC - Instituto Não Aceito Corrupção - em parceria com o Blog do Fausto Macedo, no Estadão, destaquei, no Brasil, a persistente indistinção entre os espaços e interesses públicos e privados. Agora, procurarei deslindar, de forma panorâmica, dada a restrição de espaço inerente a um artigo de opinião, alguns aspectos atinentes aos conceitos de "jeitinho", "malandragem" e conexões com a corrupção.

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Se, no escrito anterior, tratei de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Maria Sylvia de Carvalho Franco em "Raízes do Brasil" e "Homens livres na ordem escravocrata", respectivamente, peço, ao leitor, neste momento, que me acompanhe em dois outros autores que reputo como importantes fontes de conhecimento da realidade sociológica e antropológica da sociedade brasileira. Assim, das ideias e conceitos que doravante serão aqui trabalhados, tomo de empréstimo das obras "Carnavais, malandros e heróis" e "O que faz o brasil, Brasil?", de Roberto DaMatta; e, ainda, "O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros", de Lívia Barbosa.

Em "Carnavais, malandros e heróis", DaMatta desvenda, com visão arguta, a dialética entre a "casa"e a "rua", bem como o carnaval, paradas cívicas e procissões religiosas. Há, contudo, que se dedicar especial atenção à parte IV da referida obra -  "Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil". De forma simplificada, há uma diferença entre indivíduo e pessoa, ou seja, se na vida cotidiana as duas palavras podem assumir o mesmo significado, no campo sociológico há uma fundamental e relevante distinção: indivíduo é aquele, no bojo da sociedade, dotado igualdade,  de direitos e de deveres, respondendo às leis e normas burocráticas com impessoalidade; já as pessoas, no caso, distanciam-se da impessoalidade das leis e regras burocráticas e querem estabelecer laços pessoais, pautados na proximidade, no afeto, no limite, no campo emocional. Na sociedade brasileira, na perspectiva do autor, existe enorme dificuldade de se estabelecer relações assentadas na igualdade, na racionalidade e, por isso, ganha dimensão as relações pessoais, nas quais se  procurará estabelecer uma teia de relações objetivando uma "navegação" numa sociedade fortemente hierarquizada. A expressão "Você sabe com quem está falando?" entra neste universo da pessoalidade e parte para o princípio da reafirmação da hierarquia social e de uma postura arrogante e autoritária. Não nos faltaria exemplo de casos, nas mais diversas camadas sociais, da utilização da expressão. Quando, por exemplo, um dilema se estabelece em dada situação é comum apelar para esse discurso cuja expressão busca colocar cada um em seu devido lugar (de acordo com o imaginário social).

Mas, como sabemos, nem sempre se apela para o "Você sabe com quem está falando?". Se, neste caso, a expressão implica em reforço da hierarquia e prepotência antipática; há outro recurso nos meandros da sociabilidade nacional que sempre tem espaço: o jeitinho. Para Barbosa, aprofundando as teses de DaMatta, o jeitinho é forma simpática de se resolver um conflito. Se, no caso do "Você sabe com quem está falando?" salta a arrogância e postura autoritária, reafirmando as posições sociais, no jeitinho busca-se ultrapassar barreiras, leis, normas e regras sem o uso da força e sim com simpatia, habilidades discursivas e apelo aos aspectos emocionais. O jeitinho, assevera, Barbosa é parte constituinte de nossa identidade nacional e sua definição encontra conexão com outras práticas e aspectos de nossa cultura. Em suas palavras:

"Em relação à definição do que é o jeitinho, não ocorrem grandes variações. Para todos, grosso modo, o jeitinho é sempre uma forma "especial" de se resolver algum problema ou situação difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de burla a alguma regra ou norma preestabelecida, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade".

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Contudo, a pesquisadora aduz que aquilo que é e que não é jeito variam bastante e, por isso, é difícil estabelecer o que distingue jeito de "favor" e "corrupção". Assim, para Barbosa:

"Uma forma melhor de entender e distinguir essas categorias é pensá-las com um continuum que se estende de um polo, caracterizado como positivo pela sociedade e no qual está a categoria do favor, até um outro, visto como negativo, em que se encontraria a corrupção. No meio, o jeito que é visto tanto de uma perspectiva negativa como positiva. Graficamente, essas três categorias poderiam ser representadas da seguinte forma:

(+)                                           (+)/(-)                                                   (-)

_____________________________________________________________

favor                                         jeito                                                corrupção

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O que caracteriza a passagem de uma categoria a outra é muito mais o contexto em que a situação ocorre e o tipo de relação existente entre as pessoas envolvidas do que, propriamente, uma natureza peculiar a cada uma".

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No caso, o favor gera reciprocidade, pois quem recebe o favor fica "obrigado" a retribuir e, ainda, o favor não implica em transgressão, enquanto o jeitinho envolve, em grande parte das vezes, alguma infração. No que tange à diferença entre jeito e corrupção, esta é entendida como a existência ou não de alguma vantagem material proveniente da situação. Todavia, adverte Barbosa, até aqui a consciência do brasileiro torna confusa essa definição. Dar "dinheirinho" para um agente de trânsito que resolveu não me multar ou uma "cervejinha" para um fiscal sanitário, não são consideradas corrupção e sim variações do jeitinho. A corrupção, por sua vez, seria quando essas vantagens alcançariam níveis mais altos. Noutras palavras: subornar o guarda seria jeitinho e desviar milhões do Ministério da Saúde seria corrupção. Obviamente, o leitor, aqui, já encontra um problema advindo dessa imprecisão e elasticidade do que se entende como favor, jeitinho e corrupção.

O jeitinho, depreende-se das leituras dos autores, pode ser entendido como positivo, quando os brasileiros querem destacar sua criatividade, inventividade, plasticidade e pode, também, ser entendido como negativo, quando se destacam a malandragem, a burla das leis, regras e normas. O jeitinho é, no Brasil, universal, já que lançam mão dele todos, indistintamente, independente da condição social. Há, no entanto, percepções distintas a partir do nível educacional, especialmente, nas conexões de jeitinho e corrupção (fica o convite para que se leiam os trabalhos aqui citados!).

Como afirmei alhures, a corrupção é um fenômeno complexo e, neste modesto artigo, a intenção foi trazer à tona aspectos da cultura brasileira que são objetos de reflexão e pesquisa empírica da Sociologia e Antropologia. No próximo texto o foco será na investigação de Alberto Carlos Almeida transformada em livro: "A cabeça do brasileiro", no qual o autor submete a antropologia de DaMatta a um teste quantitativo.

*Rodrigo Augusto Prando, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, pela Unesp. Foi conselheiro e é colaborador do INAC

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Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

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