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Opinião | O perigo de ‘os fins justificam os meios’ justificar meios questionáveis compromete a democracia?

Práticas que violam direitos humanos, desrespeitam o devido processo legal ou subvertem os princípios democráticos são tão nefastas quanto o pagamento de propinas e subornos, pois ameaçam o próprio alicerce sobre o qual a sociedade é construída

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convidado
Por Ligia Maura Costa
Atualização:

A máxima utilitarista “os fins justificam os meios” pode parecer uma solução prática em tempos de crise, mas sua aplicação pode trazer consequências devastadoras. Condutas corruptas vão muito além do pagamento de propinas e subornos para a construção de escolas e hospitais. A definição de corrupção é ampla e abrange “o abuso de poder para obter benefícios privados”. Ela inclui, portanto, qualquer forma de abuso de poder através da manipulação ou desvio das normas e procedimentos estabelecidos, como a tomada de decisões “fora do rito” processual legal, em benefício privado, mesmo que tal benefício não seja financeiro. Essas ações, que violam o devido processo legal e a transparência, são tão prejudiciais quanto a propina e o suborno, pois minam a confiança pública e afetam a integridade da justiça.

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Desenvolvido pelos filósofos Jeremy Bentham e John Stuart Mill, o utilitarismo é uma corrente ética que avalia a moralidade das ações com base em suas consequências, nos resultados. Em essência, o utilitarismo defende que a ação mais ética é aquela que maximiza a felicidade ou o bem-estar do maior número de pessoas. Esse princípio resume a ideia de que “os fins justificam os meios” e sugere que, desde que o resultado traga mais benefícios do que prejuízos, as ações, sejam elas quais forem, podem ser justificadas em prol do bem comum. No entanto, esse ensinamento filosófico, ao ser interpretado indevidamente, abre brechas para justificar ações moral e eticamente questionáveis, em nome de um suposto bem maior. Por exemplo, sob uma interpretação inadequada, seria defensável o pagamento de propinas, a violação de direitos individuais, ou a prática de injustiças em nome de alcançar os fins desejáveis, desde que resultassem em supostos benefícios para a sociedade como um todo.

A conduta corrupta não se manifesta apenas diante do pagamento de propinas para construção de obras. A definição de corrupção aceita pela doutrina mais autorizada engloba abusos de poder que minam a equidade e a legalidade em prol de ganhos privados, que não necessariamente precisam ser financeiros, subvertendo assim os princípios que sustentam a ordem e a transparência das instituições democráticas. O comportamento corrupto existe e se torna ainda mais grave quando medidas são tomadas fora do rito processual legal, pois comprometem a integridade do sistema judicial e minam a confiança pública nas instituições.

Enquanto algumas autoridades e gestores públicos argumentam que a adoção de medidas extrajudiciais é necessária para defender a democracia, assim como os pagamentos de propinas são necessários para acelerar o crescimento econômico com a melhoria da infraestrutura, essas práticas, na verdade, corroem a confiança nas instituições, comprometem a justiça e perpetuam as próprias condutas corruptas que pretendem eliminar. A aplicação indiscriminada desse princípio ético pode transformar a defesa da democracia legitimada por condutas corruptas num novo ciclo de abusos e ilegalidades, prejudicando a própria sociedade.

Estabelecer um paralelo entre a máxima “os fins justificam os meios” e as práticas de defesa da democracia através de condutas corruptas é grave. Enquanto a democracia exige que os métodos utilizados sejam transparentes, éticos e legais, recorrer a práticas questionáveis e “fora do rito”, como a violação de direitos ou como o próprio pagamento de propinas, em nome de um bem maior, pode minar esses mesmos valores. Utilizar meios não transparentes para proteger a democracia não apenas compromete a legitimidade das instituições, mas também cria um ciclo vicioso que enfraquece o próprio sistema que se pretende defender. Em suma, a verdadeira defesa da democracia e o combate eficaz da corrupção só são possíveis quando fins e meios são igualmente respeitados, obedecendo os princípios éticos e jurídicos que sustentam a sociedade.

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A ausência de procedimentos legais formais não apenas viola o princípio da legalidade, que é essencial para garantir justiça e equidade, mas também abre brechas para abusos de poder e favorecimentos indevidos, tão usuais às práticas corruptas. Quando decisões e ações são tomadas sem respeitar os trâmites estabelecidos, a corrupção se infiltra nos processos, promovendo injustiças e enfraquecendo a credibilidade do sistema. Em última análise, tais práticas corroem a própria fundação do estado de direito e perpetuam um ciclo de impunidade e desconfiança que pode ser devastador para a sociedade.

Ao corromper o processo sob o argumento de que “os fins justificam os meios”, se enfraquece a confiança nas instituições. Essa prática cria um ambiente propício ao abuso de poder e à arbitrariedade, logo compromete a democracia. Ironicamente, ao tentar justificar ações corruptas como um meio de erradicar práticas antidemocráticas, ou ao adotar medidas jurídicas “fora do rito”, que nada mais são do que condutas corruptas numa visão ampla de corrupção, a moralidade da própria luta se perde, e o sistema de justiça corre o risco de se tornar tão corrupto quanto aquilo que se busca combater, comprometendo a democracia, que é o bem mais caro de uma Nação.

A defesa da democracia não se faz através de condutas corruptas. É necessária uma constante vigilância contra a tentação de utilizar métodos mais rápidos embora questionáveis em nome de um bem maior: o resultado. Práticas que violam direitos humanos, desrespeitam o devido processo legal ou subvertem os princípios democráticos são tão nefastas quanto o pagamento de propinas e subornos pois ameaçam o próprio alicerce sobre o qual a sociedade é construída. A democracia só pode ser preservada por meio de ações íntegras que reflitam seus valores essenciais — respeito à lei, igualdade de direitos e justiça para todos. É essa defesa intransigente dos princípios democráticos que garante não apenas a sobrevivência da democracia e do combate à corrupção, mas também a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Ligia Maura Costa
Advogada, professora, conselheira independente e autora do livro “Lava Jato: Histórias dos Bastidores da Maior Investigação Anticorrupção do Brasil”. Foto: Inac/Divulgação
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