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Opinião | Populismo penal identitário

O crime de feminicídio é muito grave, mas é preciso parar de achar que o valor que damos à vida das pessoas e aos bens jurídicos que queremos proteger só é expresso pelo tamanho das penas que atribuímos à sua violação

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convidado
Por Leonardo Massud

Num mundo em que há verdadeiros abismos entre as condições de vida das pessoas, o maior protagonismo das pautas identitárias tem produzido importantes reflexões e transformações nas relações sociais. Se estas mudanças ainda estão muito distantes de equacionar os problemas das desigualdades e a reprodução de modelos de exclusão, não se pode negar que houve avanços na adoção de políticas públicas e privadas. Nesse sentido, ao retirar da invisibilidade pessoas e situações, começa a ser possível adotar medidas concretas para a redução de iniquidades inaceitáveis.

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Não é incomum, porém, quando se combatem injustiças dessa natureza, que, vez por outra, a dose utilizada termine por violar outros direitos também fundamentais. É exatamente esse o caso da Lei nº 14.994/24, que aumentou exponencialmente as penas e consequências penais do feminicídio.

Alguns problemas já se notavam na criação do tipo penal de feminicídio. Por exemplo, o legislador poderia ter criado um gênero de homicídio especial para os casos de intolerância e ódio, do qual o feminicídio seria uma das espécies. Não o fez.

Por outro lado, o feminicídio enquanto categoria criminológica, merecedora de uma política criminal específica, é plenamente justificável quando o homicídio é praticado contra a mulher exatamente por esta sua condição. Nisso, teria acertado a lei quando diz que considera o crime praticado por razões de sexo (aqui deveria ter dito gênero) feminino a conduta praticada com menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

O problema estava — e continua na nova lei — em equiparar toda e qualquer violência doméstica e familiar às razões da condição do gênero feminino. Se é verdade que uma enorme quantidade de graves problemas sociais passa pelas questões de classe, raça e gênero, a vida é muito mais complexa do que isso, e os conflitos sociais não se resumem a essas três categorias.

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É certo que grande parte das violências praticadas no âmbito doméstico está relacionada à estrutura de poder patriarcal e machista que termina por menoscabar a condição feminina, mas nem todo conflito familiar que vitima a mulher está relacionado a essa sua condição. Imaginemos, por exemplo, que um genitor, num ato de fúria descontrolada, agride e mata um casal de filhos gêmeos, um menino e uma menina, de 5 anos de idade. Seria um homicídio para o menino e um feminicídio para a menina, mesmo que a ação nada tenha a ver com o desprezo pelo gênero? Pensemos em outro caso, em que um filho, maltratado, agredido física e psicologicamente pela mãe durante anos, resolve matá-la. O que o gênero tem a ver com isso? A lei, porém, diz que ambos os casos são feminicídio.

Mas, se os problemas acima apontados permanecem na nova lei, outros tão ou mais graves foram trazidos por ela. Com uma pena mínima de 20 anos e máxima de 40, mas que pode chegar a até 60 anos, a depender da presença de algumas causas especiais de aumento, o feminicídio passou a ser o crime mais grave do nosso ordenamento jurídico. É mais grave do que matar alguém torturando. Pior do que matar pessoas com deficiência em razão desta. Pior do que estuprar alguém resultando em morte. Mais grave que o genocídio previsto na nossa legislação interna (L. 2889/56). Exceto em circunstâncias excepcionais, é mais grave que todos os crimes contra a humanidade previstos no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional.

Há, portanto, uma miríade de inconstitucionalidades: falta de proporcionalidade interna da norma, desta com outras condutas previstas na legislação penal e penas que não são apenas draconianas, mas, na prática, de caráter perpétuo.

O crime de feminicídio é muito grave, mas é preciso parar de achar que o valor que damos à vida das pessoas e aos bens jurídicos que queremos proteger só é expresso pelo tamanho das penas que atribuímos à sua violação. Tampouco é possível construir mais civilidade, solidariedade e igualdade se fundarmos nossos pilares em respostas excessivamente violentas. A ver o que dirão nossos juízes, em especial o Supremo Tribunal Federal.

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Professor de Direito Penal da PUC/SP e advogado criminal no Massud, Sarcedo e Andrade Advogados. Foto: Arquivo pessoal
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