Desde o final de 2023, o tema da reavaliação de acordos de colaboração firmados durante o período da Lava Jato tem ganhado espaço e destaque no debate público, com boas razões.
Nesse contexto, merecem análise duas decisões recentes do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que têm estado em evidência e sido alvo de críticas.
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A primeira, de dezembro passado, atende a pedido da empresa J&F e determina a suspensão do pagamento da multa de R$ 10,3 bilhões estipulada no acordo de leniência da companhia, firmado no âmbito da Operação Greenfield.
A decisão ainda confere à companhia acesso a todo o material colhido na Operação Spoofing, que indicaria possível conluio entre órgãos de acusação e o juiz responsável pela Lava Jato, o hoje senador Sergio Moro.
A empresa pretende avaliar o conteúdo em busca de mensagens que possam indicar alguma atuação irregular dos procuradores da força-tarefa e permitir um pedido de revisão da leniência junto à Controladoria-Geral da União (CGU), de modo a tentar, por exemplo, a redução da multa pactuada em 10,3 bilhões para R$ 591 milhões. Até o momento, a empresa já pagou R$ 2,9 bilhões.
O pedido foi formulado pela empresa em uma ação em que o ministro anulou provas usadas na prisão do presidente Lula, obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht.
A empresa argumenta que foi coagida “a celebrar acordo de leniência e apresentar anexos para assegurar sua sobrevivência financeira e institucional”, o que a levou a um acordo que considera abusivo. A decisão, ponderando essa argumentação, se fundamenta no fato de haver dúvida razoável sobre a voluntariedade, por parte da empresa, em firmar o acordo.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu da decisão agora no início deste mês de fevereiro, requerendo que o caso seja levado ao plenário da Corte. O procurador-geral Paulo Gonet afirma que o pedido da empresa não tem conexão com a ação relatada pelo ministro do STF, que trata do acesso às mensagens da Operação Spoofing, uma vez que a leniência da J&F não foi fechada pela Lava Jato do Paraná.
Assim, a PGR argumenta que o caso não deveria ter sido encaminhado para relatoria do ministro Dias Toffoli, mas sim distribuído livremente. Desta forma, Gonet pede que haja nova distribuição do caso e que a decisão de Toffoli fique suspensa até análise do novo relator.
A demanda seguiria para uma das turmas do Tribunal. Mas, nesse caso específico, Gonet sustentou que deve ser avaliada pelo Pleno, justificando que o tema é relevante e semelhante ao objeto da ADPF 1051, na qual os partidos PSOL, PcdoB e Solidariedade questionam a constitucionalidade e pedem a suspensão das multas estabelecidas nos acordos de leniência da Operação Lava Jato. A referida ação é de competência do plenário do STF e, sob relatoria do ministro André Mendonça, ainda aguarda julgamento.
A segunda decisão do ministro Dias Toffoli que ganhou o centro da atenção pública foi proferida no final de janeiro e suspendeu os pagamentos da multa do acordo firmado pela Novonor, antiga Odebrecht, com o Ministério Público Federal, no valor de R$ 3,8 bilhões. Com a correção monetária, o valor total chegaria a R$ 6,7 bilhões ao fim dos 20 anos previstos para o pagamento.
Há ainda outro acordo, firmado com a CGU e a Advocacia-Geral da União (AGU) em 2018, que prevê outra multa, de mais de R$ 2,7 bilhões, a ser paga no prazo de 22 anos. Quanto a este, o ministro determinou que a Novonor deverá acionar tais autoridades para renegociar.
Essa decisão é uma extensão daquela proferida em relação à J&F e, da mesma forma, o ministro afirmou haver dúvida a respeito da voluntariedade da companhia na celebração do acordo e autorizou a Novonor a avaliar “diante dos elementos disponíveis coletados na Operação Spoofing, se de fato foram praticadas ilegalidades”.
A PGR também recorreu dessa decisão, no último dia 14, argumentando que o pedido veiculado pela empresa não guardaria pertinência com a Rcl nº 43007, em que foi autorizado o compartilhamento de provas da Operação Spoofing, não sendo possível, portanto, estender seus efeitos.
Ainda, Gonet afirma que o STF não teria competência para dispor sobre o acordo celebrado em primeira instância e, ao final, pede que este segundo recurso também seja analisado pelo Tribunal Pleno do STF.
No total, as multas suspensas pelo ministro somavam R$ 14,1 bilhões na época em que os acordos foram celebrados, valor que está sujeito à correção monetária.
Muito se tem criticado essas decisões do ministro Dias Toffoli, especialmente considerando as cifras vultuosas que poderão deixar de ser arrecadadas.
No entanto, as decisões e seus efeitos não podem ser analisados isoladamente e apenas sob a perspectiva arrecadatória.
Em primeiro lugar, as decisões proferidas pelo ministro não anulam os acordos ou as obrigações das empresas. Apenas determinam a suspensão dos pagamentos das multas, enquanto se apura eventuais excessos que possam comprometer a legalidade e os termos dos acordos firmados, possibilitando a repactuação.
Ainda, a 2ª Turma do STF, em fevereiro de 2022, já havia declarado a nulidade de diversas provas usadas em inúmeros processos criminais ligados à Lava Jato, pois teriam sido obtidas em procedimentos maculados pela incompetência e parcialidade do juízo de Curitiba.
A partir desse quadro, em setembro de 2023, o ministro Dias Toffoli declarou imprestável o uso desses elementos de prova em todos os processos que deles se utilizaram. Nesse contexto, os pedidos formulados pelas empresas J&F e Novonor decorrem de um processo que revelou abusos e violações à lei cometidos ao longo da Operação Lava Jato.
A propósito, as decisões em questão estão amparadas em precedentes que já haviam franqueado a pessoas físicas o acesso aos materiais de prova da Operação Spoofing, para que pudessem utilizá-los em sua defesa. Assim, a decisão, na prática, estende essa permissão a pessoas jurídicas que também se viram alvo da pretensão punitiva Estatal (ainda que em âmbito não criminal).
Nesse contexto, a suspensão das obrigações dos acordos de leniência, enquanto se realiza a análise da legalidade desses certames, é consequência natural sob o ponto de vista cautelar, especialmente diante das ilegalidades já reconhecidas pelos tribunais.
Como bem aponta o ministro, segundo precedente do próprio STF (Pet 5.244), a voluntariedade é condição para a validade de um acordo de colaboração. Assim, havendo qualquer dúvida acerca da existência dela, a situação deve ser analisada.
Para além disso, a notícia da prática de excessos pela Operação Lava Jato – tais como comprometimento da cadeia de custódia das provas, compartilhamento ilegal de informações sigilosas, além da utilização de prisões temporárias e sufocamento financeiro para “estimular” a assinatura de acordos de colaboração e leniência –, apesar de não ser nova, representa uma situação gravíssima que precisa ser apurada.
A revisão dos acordos de leniência em prol de se verificar se foram firmados efetivamente a partir dos princípios a eles aplicáveis, e seguindo os ditames legais, é mais do que necessária, tanto pelo respeito às garantias constitucionais dos alvos de investigações – administrativas ou penais – como para a própria eficácia e respeitabilidade desses instrumentos negociais.
Tendo sido o Tribunal Pleno provocado pela PGR, nos resta acompanhar se os demais ministros irão referendar ou não as decisões proferidas por Toffoli, bem como qual será a amplitude a elas conferida. A depender, muitos pedidos de revisão de acordos de leniência e colaboração premiada poderão – e certamente irão – surgir.
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