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Opinião|Uma história de ativismo judicial: o STJ e o 'conto do pedófilo'

convidado

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente inocentou um réu, acusado de estupro de uma menina de 12 anos de idade. A justificativa? A união estável entre a vítima e o estuprador e eventual formação de família com a gravidez advinda do estupro em julgamento.

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Como comentarista da norma, mantenho firme o propósito de respeitar critérios técnicos, afastando as emoções naturais que todos os seres humanos trazem e que formam sua intelectualidade. De fato, neste caso não é uma missão muito simples.

O palco desta análise – frente a um contexto eminentemente legal e sempre iluminado pela Constituição Federal – é o AResp 2.389.611 que, julgado pela 5ª Turma do STJ, por maioria, vencidos a ministra Daniela Teixeira e o ministro Azulay Neto, retirou punibilidade (lato sensu) do estuprador por formação de união estável entre estuprador e a vítima. Detalhe que o processo chegou ao Poder Judiciário em razão de notícia dada pela própria mãe da criança.

Em uma análise de cunho eminentemente constitucional, causa espécie tal decisão pela súmula – do próprio STJ – que narra: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”

A decisão da Turma – excetuando-se os vencidos – desenquadra-se absolutamente da norma exposta no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro e da Súmula do próprio STJ. É um verdadeiro passeio de desrespeito à Constituição Federal, em especial artigos específicos que resguardam direito da criança, dignidade da pessoa humana e proteção da mulher.

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Quando um Tribunal de uniformização faz um desenquadramento do caso concreto a uma súmula que deveria fundamentar os julgamentos em nome da segurança jurídica e do respeito ao princípio do colegiado, faz-se o que chamamos de distinguishing, que é – ou deveria ser – a fundamentação do motivo de desenquadramento do caso ao precedente vinculante.

No caso concreto, o fato do estuprador contrair união estável com a vítima beira a insanidade como forma de absolvição, ou extinção de punibilidade. Exatamente porquanto, todos os precedentes que deram origem à Súmula serem no sentido de proteger de forma presumida a violência contra menores de 14 anos, justamente por não terem sua formação mental, psíquica e de escolha sexual formadas. A função normativa, portanto, foi criar um critério objetivo, qual seja, a idade como forma de presunção da violência.

Vale ressaltar que, da mesma forma que não cabe ao Poder Judiciário fazer um cotejo sobre a capacidade mental daquele menor que comete crime – antes da maioridade penal – e apená-lo como se maior de idade fosse, igualmente não cabe fazê-lo em relação à vítima como se fez nesse Julgado.

É evidente que o STJ, ainda que se tenha todo apreço e respeito pela Corte Cidadã, violou a tripartição do poder na medida em que considerou uma excludente de punibilidade que o legislador não criou na norma do artigo 217- A do Código Penal Brasileiro. E assim fazendo, feriu de morte não só o texto legal, mas a Constituição Federal.

A decisão criou uma hipótese de não apenamento, claramente praticando um ativismo judicial, e saindo categoricamente das funções constitucionais do STJ. Explicamos:As Cortes de Uniformização de jurisprudência têm em sua função precípua equilibrar o sistema jurídico, criando formas de categorização – quanto mais objetivas possível – para aplicação em todo sistema judiciário brasileiro. No caso do STJ, cabendo ter a última palavra sobre as questões não afeitas constitucionalmente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Aliás, costumo sintetizar com a frase que era bastante comum aos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio no sentido de que, em Cortes Superiores, os processos não deveriam ter capas. Justamente, pelo fato de que tem aplicação a outras situações análogas.

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Nos crimes de agressão sexual a crianças, a porta de entrada de estupradores, por vezes, é a psique ainda não formada. Com doces, comida, celulares, os abusadores ingressam na mente de crianças, roubando delas sua inocência e sua integridade física e mental. Como criar uma excludente em caso de formação de união estável? Se é exatamente isso que a norma impede categoricamente. Com a palavra, os eminentes ministros.

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De outra banda, tem-se ainda que o próprio STJ estaria impedido de discutir as provas no processo, justamente por ser uma Corte que está adstrita a dizer a norma e sua interpretação e não à formação persuasiva fática. Ainda que se possa ventilar a construção de norma individual e concreta pela revaloração de provas aplicadas à causa. Todavia, não é este o caso que adentrou categoricamente ao fato de formação de união estável entre o estuprador e a criança vítima de abuso.

Assim, além de negar vigência ao artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, o STJ praticou defiance (que é afronta direta ao entendimento consolidado por precedente vinculante do próprio STJ), não aplicando em Turma precedente sedimentado pelo efeito vinculante de interpretação pelo STJ como órgão judiciário constitucional.

O princípio da dignidade humana, cravado no cerne fixo da Constituição Federal (artigo 60, §4º) e, in casu, aplicado às crianças, foi aviltado pela decisão da 5ª Turma.

Com o precedente criado pelo STJ, a meta de um pedófilo é criar vínculo afetivo suficiente para uma união, e assim vir-se livre do atingimento da norma. É algo estarrecedor!

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Não é por acaso que os dois ministros contrários à aleivosia contida na decisão em comento ingressaram recentemente no STJ, e me parece sintomático que ainda estejam com o senso de vida real apurado, algo que parece ter sido, neste caso ignorado por seus pares de turma, com o aludido respeito.

Caberá certamente ao STF manifestar-se sobre a imoralidade protegida pela decisão do STJ.

Por fim, faço minhas as palavras de quase desespero da ministra Daniela Teixeira ao tentar persuadir seus pares no referido julgamento: “Não se pode racionalmente aceitar que um homem de 20 anos tivesse relação sexual com uma menina de 12 anos. Estamos falando de uma criança agredida, com relação sexual, de onde veio uma gravidez, que é uma segunda agressão. Uma menina que tinha uma vida inteira pela frente, aos 12 anos de idade, corre sério risco de vida ao levar essa gravidez adiante. E levando, corajosamente, terrivelmente ou tragicamente, tem sua vida praticamente ceifada. É uma violência inominável e inadmissível”.

Além de minhas homenagens à ministra Daniela Teixeira, lembro aqui, ensino do sempre ministro Eros Grau, em sua obra “Por que tenho medo dos juízes”: “Colocando-se propositalmente à margem dessa indagação, Kelsen sustenta que a tarefa de saber qual é a interpretação correta – entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do direito a aplicar – não é um problema de teoria do direito (do conhecimento dirigido ao direito positivo), mas da política do direito. Esta, não obstante, é uma questão fundamental: a interpretação é uma ciência ou uma prudência: Tenho sustentado reiteradamente que a interpretação é uma prudência”.

Convidado deste artigo

Foto do autor Aílton Soares de Oliveira
Aílton Soares de Oliveirasaiba mais

Aílton Soares de Oliveira
Sócio-fundador do escritório A. Soares de Oliveira Advogadas e Advogados, constitucionalista, especialista em Planejamento Sucessório e Contencioso de Família
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