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Comissão de Ética pode rediscutir quarentenas de autoridades do governo Bolsonaro

Casos revelados pelo ‘Estadão’ serão analisados pelo colegiado, afirma presidente da comissão; processos podem ser reabertos

Foto do author André Shalders
Foto do author Tácio Lorran
Por André Shalders e Tácio Lorran
Atualização:

BRASÍLIA - A Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República pode rediscutir regras de quarentena para altos funcionários públicos após o Estadão revelar possíveis casos de desvirtuamento do benefício envolvendo ex-ministros e dirigentes do governo Jair Bolsonaro. É o que diz o presidente da CEP, o advogado Manoel Caetano Ferreira Filho. Os processos de quarentena citados nas reportagens podem até ser reabertos.

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Na segunda-feira, 15, o Estadão mostrou que ex-comandantes de Marinha e Exército apresentaram propostas de trabalho contestadas pelas empresas para receber seis meses de salário extra. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) já pediu que a Corte de Contas apure as quarentenas dos ex-comandantes.

Na terça, 16, o jornal revelou que 12 ex-integrantes do governo Bolsonaro (ministros e dirigentes) alegaram interesse em ir trabalhar na iniciativa privada e ganharam o benefício. Ao terminar o período de afastamento recebendo salários sem trabalhar, porém, eles retornam ao serviço público. Os servidores citados negaram irregularidades.

“Nós temos sessão na Comissão na semana que vem e vou levar este tema para analisar e deliberar. Essa é a ideia. Vou levar já essas providências que o TCU vai tomar ou não e analisar que providências podemos tomar”, disse ao Estadão o presidente da Comissão de Ética Pública. A reunião está marcada para a próxima terça-feira, dia 23.

O presidente da Comissão de Ética Pública, Manoel Caetano Ferreira Filho Foto: Presidência da República / reprodução

A quarentena existe para evitar o uso de informação privilegiada por altos funcionários públicos, ao irem trabalhar em empresas privadas. Ao decidir ir para a iniciativa privada, é preciso consultar a Comissão de Ética Pública.

Especialistas, juristas e ex-integrantes da CEP ouvidos pela reportagem recomendam que o colegiado padronize o procedimento nestes casos, de modo a evitar fraudes. Uma medida eficaz poderia ser a de procurar sistematicamente as empresas que são mencionadas pelas autoridades, dizem eles. Além disso, caso sejam comprovadas as irregularidades, os servidores podem ser responsabilizados tanto administrativamente quanto na esfera criminal, a depender do caso.

Ao Estadão, o presidente da CEP disse ainda que os casos dos ex-dirigentes do governo Bolsonaro citados pela reportagem podem até mesmo ser reabertos – mas ainda é cedo para saber qual caminho será tomado pelo colegiado. O grupo também vai pensar formas de evitar que problemas como os apontados voltem a acontecer, disse ele. “É uma das preocupações que a gente vai debater”, disse.

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Para Bernardo Viana, advogado especialista em compliance e anticorrupção e mestre em direito pela Universidade de Columbia (EUA), o “primeiro passo” é que as empresas que teriam feito as propostas de emprego sejam ouvidas pela CEP. “As empresas poderiam ser solicitadas a confirmar, por exemplo, a veracidade desses convites. Graças ao jornalismo, foi descoberto os casos dos generais. Mas podemos ter tido vários outros servidores que fizeram o mesmo ao longo dos anos e isso não veio à tona”, diz ele, que é sócio do escritório Vieira Rezende Advogados.

O almirante Garnier Santos, ex-comandante da Marinha sob Bolsonaro Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

“Quarentena é um dever. A compensação (salários) pode vir a ser um direito. Agora, a quarentena é importante para evitar que servidores de alto escalão utilizem-se de informações privilegiadas, seu poder, sua influência, de maneira indevida, em benefício de alguma entidade privada. É uma forma de blindar e proteger a Administração Pública”, diz Viana.

Integrante da Comissão de Ética Pública entre 2012 e 2018, a ex-juíza Suzana de Camargo Gomes diz que o órgão colegiado solicita o convite de emprego recebido pelas autoridades para evitar, em um primeiro momento, que a quarentena seja usada como um seguro-desemprego. “Quando a gente passou a solicitar o convite, o nosso problema era outro. O objetivo da proposta de emprego era verificar se a pessoa sairia para um campo de atuação que tivesse convergência ou estivesse na mesma linha do que o servidor desenvolveu no setor público. Mas agora, se estão apresentando um documento perante um órgão público, e se esse documento traz indícios de não ser verdadeiro, isso é um crime”, afirma Gomes.

Edson Vieira Araújo é advogado especialista em Direito Eleitoral e foi juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Piauí. Na avaliação dele, o tema já é tratado de forma suficiente pela lei existente hoje. O que falta é rigor no acompanhamento dos casos. “Não é falta de regra sobre o assunto, o que se pode fazer é otimizar a ação dos órgãos de controle na fiscalização destas regras, em especial no Conselho de Ética da Presidência e no Tribunal de Contas da União”, diz ele, que é também mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, a Abradep.

Célio Faria Júnior (esquerda) com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) Foto: Dida Sampaio/Estadão - 12/03/19

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Para um ex-presidente da CEP, que preferiu não se identificar, “não há sistema perfeito”. De acordo com ele, a ferramenta em si é eficaz para o propósito dela: que é impedir o uso de informação privilegiada e eventuais conflito de interesses.

Esse ex-presidente da CEP, porém, conta já ter visto casos de autoridades que recorreram de decisões que negaram a quarentena, deixando claro que o interesse principal era na manutenção do salário anterior. Segundo ele, no entanto, não se pode “estigmatizar a quarentena”, mas é preciso “saber dosar” o benefício, uma vez que é um dispêndio aos cofres públicos.