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Decretos de Lula no primeiro ano focaram mais em definir cargos no governo do que em criar programas

Presidente dedicou 101 de 487 decretos assinados em 2023 para definir a estrutura regimental e cargos de confiança em órgãos e ministérios; Casa Civil foi procurada, mas não se manifestou

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Foto do author Weslley Galzo
Atualização:

BRASÍLIA - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou 487 decretos entre 1º janeiro e 1º de dezembro deste ano. Esse instrumento de uso exclusivo do chefe do Executivo serve para regulamentar leis, emitir normas para a administração pública e criar políticas setoriais sem a necessidade de negociações custosas com o Congresso, sobretudo numa conjuntura em que não se tem maioria consolidada.

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Em sua volta ao Palácio do Planalto, Lula se valeu da sua prerrogativa na maior parte do tempo para gerir a burocracia do Estado em vez de criar novos programas ou conceder recursos para segmentos da economia.

A Casa Civil da Presidência da República informou à reportagem que “a atual gestão assumiu o governo em janeiro de 2023 num cenário de ampla desorganização”.

“Ao longo deste ano, foi necessário recriar estruturas para implementação de políticas públicas importantes para o povo brasileiro”, afirmou.

O presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião de apresentação e assinatura dos decretos que atualizam a regulamentação do Marco Legal do Saneamento Foto: Ricardo Stuckert/PR

Um quinto desses decretos, o equivalente a 101 atos, focou em definir a estrutura regimental e o quadro de cargos de confiança em órgãos e ministérios do governo. Parte deles também definiu o uso dos prédios públicos e as atribuições dos ministros da nova gestão.

Um exemplo das mudanças internas promovidas pelo petista foi definir as competências da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) após a sua transferência — via medida provisória — do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para a Casa Civil. O Congresso agiu para devolver o controle da área aos militares, mas Lula vetou as mudanças e manteve a Abin sob a tutela do ministro da Casa Civil, Rui Costa.

O professor Fábio Andrade, que dá aulas de políticas públicas na ESPM, avalia que os decretos destinados à organização dos Ministérios e à definição de cargos cumprem a função de viabilizar o sucesso das iniciativas do governo. “Os resultados das políticas públicas estão intimamente ligados à máquina que vai operar”, explicou.

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Mas ponderou que “uma leitura mais rápida e menos dialogada com a sociedade pode passar uma impressão ruim de que está se retomando a máquina (pública) única e exclusivamente para a distribuição de cargos”. “O governo deveria ter uma comunicação com a sociedade para justificar o que está acontecendo”, avaliou.

Se por um lado o primeiro ano do atual governo serviu para “arrumar a casa”, algumas políticas anunciadas como vitrine da nova gestão de Lula acabaram sendo estacionadas. O petista editou apenas oito decretos de homologação de terras indígenas. Auxiliares do Ministério dos Povos Indígenas e do Palácio do Planalto atribuem a retomada lenta das demarcações ao processo burocrático desses casos dentro da estrutura governamental, ainda que a promessa de Lula seja zerar as demarcações pendentes ainda neste mandato.

Em áreas cuja incidência do presidente exige menos estudos e pareceres técnicos, os resultados também não foram massivos. O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), por exemplo, teve sete decretos especificando as áreas econômicas que seriam privilegiadas pela atuação conjunta com o governo.

Os programas e as reformas são geralmente utilizados como vitrines pelas gestões presidenciais para mostrar resultados e expor suas “marcas” aos eleitores. Na área de políticas públicas, na qual o presidente não depende de apoio parlamentar, Lula agiu de forma moderada combinando a criação de algumas iniciativas com a retomada de outras já popularizadas em governos anteriores do PT.

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Foram criados via decreto 15 novos programas federais, como as ações afirmativas na administração pública, o combate à violência contra a mulher e a iniciativa pró-catadores para a reciclagem popular. Esse rol abarca também o “carro-chefe” da gestão Lula 3: o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Além disso, 25 atos foram editados para regulamentar e alterar programas já existentes, como a Farmácia Popular.

Em comparação com o início da gestão Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro criou seis novos programas no seu primeiro ano de governo e fez alterações em outros três já em curso. A principal iniciativa do antecessor de Lula no início de mandato foi criar o programa de escolas cívico-militares — medida que acabou revogada via decreto pelo petista neste ano. Lula, por sinal, destinou sete decretos à revogação de atos do governo Bolsonaro, como o programa “Abrace o Marajó”, de autoria da ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves.

O professor de ciência política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Sergio Praça defende que “decretos são medidas que deveriam ser usadas com menos frequência”, sobretudo quando se trata de criar programas. “É desejável que toda formulação de política pública, projeto ou programa passe pelo Legislativo de alguma maneira”, afirmou.

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Decretos relacionados a conselhos e grupos de trabalho superam os atos de criação de programas

Lula assinou neste ano 40 decretos voltados à criação e organização de conselhos federais. Esses fóruns foram frequentes em mandatos anteriores do petista para atrair a participação popular. No decorrer dos anos, porém, esse modelo foi alvo de críticas pela pouca efetividade de atuação.

Nos seus dois primeiros governos, entre 2003 e 2010, foram montados 15 conselhos. Somente neste ano já foram instituídos 10 conselhos, que discutem temas que vão do combate à corrupção dentro do governo aos direitos das pessoas LGBTQI+.

Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que Lula em seus dois primeiros governos criou mais do que o dobro de conselhos do que os antecessores Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso juntos. Os três ex-presidentes criaram 11, apenas um a mais do que o atual chefe do Executivo em seu terceiro mandato.

Outra marca dos decretos editados por Lula foi a constante criação de grupos de trabalho (GTs). Somente neste primeiro ano de governo foram 41 atos deste tipo, que estão no DNA “assembleísta” dos governos do PT. Quando o petista assumiu a Presidência pela primeira vez em 2003, foram criados 55 grupos de trabalho em 15 meses.

Alguns grupos criados em 2023 apresentaram propostas que foram convertidas em ações de governo, como o GT que elaborou a política de valorização do salário mínimo. Em agosto deste ano, Lula sancionou a lei que prevê aumento permanente do valor mínimo que deve ser pago aos trabalhadores.

Outro exemplo de GT bem sucedido foi o que elaborou o plano nacional de igualdade salarial entre mulheres e homens. Lula editou um decreto, em novembro, que regulamenta a lei idealizada pelo governo para obrigar as empresas com mais de cem empregados a divulgar a cada seis meses um relatório de transparência salarial e critérios remuneratórios.

Houve, no entanto, GTs criados com a intenção de ouvir demandas de grupos sociais e estruturar políticas públicas, mas que acabaram sem dar respostas efetivas ao que foi proposto. Foi assim no GT criado por Lula, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego, para discutir a regulação dos aplicativos de entrega.

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Foram quatro meses de discussões, entre maio e setembro, que não resultaram no aguardado projeto de lei de autoria do governo que iria regular a relação entre as empresas de aplicativos e os entregadores e motoristas. A expectativa era de que a proposta fosse enviada em outubro, o que não ocorreu. Além disso, pessoas que participaram do GT se queixaram de umas das versões do texto elaborado pelo Ministério do Trabalho por conter ideias que não teriam sido debatidas e validadas internamente.

Procurado, o Ministério do Trabalho não se manifestou sobre os resultados o GT.

O professor Andrade avalia que a constante criação de GTs por Lula está relacionada com o aspecto “mais ideológico do grupo que ocupa a Presidência da República”. Ele assinala que os estudos de políticas públicas apontam esses fóruns, sobretudo quando envolvem mais de um ministérios, como peça fundamental “para evitar a todo instante a necessidade de fazer correção de rotas”.

“Parte da literatura de ciência política avalia que (os grupos de trabalho) tornam os processo mais lentos, porém diminuem déficits democráticos”, afirmou o professor Andrade.

Relações exteriores, economia, meio ambiente e defesa estão entre os principais temas dos decretos

Os decretos de Lula ainda contaram com atenção especial à retomada do protagonismo do Brasil nas relações exteriores. O presidente assinou 25 decretos relacionados a acordos internacionais e outros 15 que tratam da burocracia do País no exterior, como a validação de tratados, a definição de regramentos diplomáticos e o remanejamento de consulados e escritórios.

O resident Lula com Ministra do Meio Ambiente Marina Silva na 28ª reunião anual das Nações Unidas sobre o clima, COP28, realizada em nos Emirados Árabes Unidos.  Foto: Ricardo Stuckert/PR

Outras três áreas que acabaram recebendo atenção diferenciada foram a economia (25) — com decretos que envolvem desde definições orçamentárias a repasses da União aos Estados e Municípios —, o meio ambiente (11) e a defesa (12). Os militares, mesmo com a imagem chamuscada pelos atos do dia 8 de janeiro e a relação estreita com o ex-presidente Jair Bolsonaro, conseguiram benesses como o estabelecimento de vagas para promoção de oficiais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

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