BRASÍLIA – A captura do dinheiro público por emendas parlamentares no Brasil não encontra paralelo na comparação com outros países. Deputados e senadores brasileiros interferem até 20 vezes mais no Orçamento do que congressistas de nações integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo do qual o País quer fazer parte.
Segundo estudo do economista Marcos Mendes para o Instituto Millenium, ao qual o Estadão/Broadcast teve acesso, as emendas representam 24% das despesas verbas dos ministérios e de investimentos este ano, os gastos discricionários. Essa parcela envolve gastos não obrigatórios, passando por manutenção de órgãos públicos, pagamento de conta de luz, fiscalização ambiental e investimentos em escolas e estradas.
O estudo mostra que, na comparação, os parlamentares brasileiros interferem muito mais no Orçamento, pulverizando recursos públicos para redutos eleitorais de forma livre e sem critérios objetivos.
Para Mendes, a situação evidencia falta de planejamento, ausência de conexão com políticas públicas em nível nacional e abre caminho para a corrupção, como mostram as suspeitas reveladas recentemente pelo Estadão com o uso das verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Outro fator que faz das emendas uma jabuticaba brasileira é o grau de detalhamento das indicações. No Brasil, os parlamentares alteram a proposta encaminhada pelo Executivo determinando o envio de verbas para cidades e obras específicas (uma praça, por exemplo). Na América Latina, esse nível de detalhamento só ocorre no Chile, onde os parlamentares também enviam recursos para obras em locais específicos, conforme pesquisa da OCDE citada no estudo. Só que lá o Congresso não pode aumentar as despesas, apenas remanejá-las.
Nos outros países, as alterações envolvem gastos mais amplos (mais dinheiro para a saúde e menos para o pagamento da folha salarial), deixando a escolha final para o Executivo.
No Uruguai, Peru, Equador e Guatemala, os recursos são direcionados a ministérios. Já no Paraguai, Panamá, México, Costa Rica e Bolívia, o dinheiro é destinado a programas de governo, como saneamento básico ou de transferência de renda.
“No Brasil, o detalhamento gera uma fragmentação de recursos muito grande e impede o planejamento. O interesse eleitoral do parlamentar não necessariamente é o interesse do município. Ele pode ter um interesse pessoal, pode ter um conluio e estar interessado em favorecer um fornecedor, e não o município em si”, afirma Mendes.
O Congresso avançou no controle das verbas orçamentárias aproveitando-se da fragilidade política dos governos. As emendas impositivas foram aprovadas durante o governo Dilma Rousseff antes do processo de impeachment. O orçamento secreto, revelado pelo Estadão, foi criado no início do mandato de Jair Bolsonaro como moeda de troca para a sustentação política do presidente.
O Congresso tem avançado sobre o controle do dinheiro público federal. Até 2014, o governo não era obrigado a gastar a verba das emendas. Isso mudou em 2015, quando o Legislativo tornou impositivas as emendas individuais, aquelas indicadas por deputado e senador.
Em 2019, as emendas de bancada, colocadas pelo conjunto de parlamentares de cada Estado, ganharam o mesmo status. Também naquele ano, o Legislativo alterou a Constituição para tornar toda a execução do Orçamento obrigatória. O Congresso criou ainda as emendas de relator, que estão no centro do orçamento secreto, e as transferências especiais, apelidadas de “cheque em branco”, que repassam recursos a prefeitos e governadores para uso livre e sem fiscalização federal.
O comando do Congresso vem defendendo a ampliação das emendas parlamentares como forma legítima. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse à reportagem que o “ Orçamento é público e sua elaboração e destinação, transparentes”. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL) não quis se manifestar.
As alterações deram poder político ao Congresso, principalmente aos partidos do Centrão que passaram a ocupar postos-chave na cúpula do governo e também do Legislativo. Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro, ao falar de orçamento, admitiu que as emendas ajudavam a acalmar o Congresso.
“O modelo não só abre espaço, como incentiva a corrupção”, diz Mendes, que também foi idealizador do teto de gastos – regra que limita o crescimento das despesas à inflação. “As emendas engessam o Orçamento e desequilibram a balança porque os parlamentares ficam com um poder muito grande de gastar sem a responsabilidade com a estabilidade fiscal, que cai nas costas do presidente e do ministro da Economia.”
Além de mexer nas regras, a mudança se traduziu em aumento do valor das emendas. O que em 2014 representava R$ 8,7 bilhões nas contas públicas se transformou em R$ 36 bilhões neste ano.
Nos últimos quatro anos, o Congresso aprovou em média 7.733 emendas parlamentares. Em 2022, 3.563 indicações – mais da metade do total – foram direcionadas para localidades específicas (município ou Estado), não para ações de abrangência nacional.
Nesse mesmo critério de apuração, os Estados Unidos aprovaram 285 emendas em 2021, o que representa apenas 2,3% da despesa total. “O que o Brasil faz é uma aberração e acaba comprometendo muito a questão da democracia. É preciso acabar com as emendas ou diminuir muito. O Executivo deveria fazer essa alocação e o parlamentar ser o responsável por fiscalizar”, afirma a diretora executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.
Mendes sugere o fim das verbas individuais, de bancada e as de relator. Ele defende as emendas de comissões, onde deputados e senadores só podem indicar recursos para ações de abrangência nacional e para as áreas que representam, como saúde, educação e segurança pública, o que aumentaria a qualidade dos repasses.
A proposta foi formalmente apresentada pelos consultores da Câmara Hélio Tollini e Paulo Bijos em 2021, mas está na contramão do que o Congresso tem feito na prática. “Vai ser muito difícil reverter isso”, diz.