PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

A política sem segredos

Opinião|O dia em que Genoíno e FHC discutiram sobre o artigo 142 da Constituição e a luz apagou no Congresso

Na Constituinte, o Partido dos Trabalhadores denunciou que texto era dúbio e não podia dar às Forças Armadas o direito de intervir na política; 35 anos depois, bolsonaristas tentaram justificar intervenção militar a partir de interpretação que o Supremo julga ser inadmissível

Foto do author Francisco Leali
Atualização:

O Supremo Tribunal Federal (STF) quer por fim às pretensões de quem acredita que as Forças Armadas detêm um “poder moderador” no País. Pelo voto da maioria de seus ministros, a Corte pretende decretar que os militares não devem nem podem agir acima das instituições democráticas e explicitar que o artigo 142 da Constituição não dá superpoderes à caserna.

A teoria do poder moderador repetida tantas vezes pelos seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro ajudou a insuflar os atos de 8 de janeiro de 2023. Houve também jurista pondo no papel e defendendo abertamente que a letra constitucional permite aos militares agir, sob as ordens do presidente da República, para impor a ordem e a lei aos demais poderes. De tanto ouvir a ameaça, ainda durante a campanha de 2022, integrantes do PT cogitaram incluir no programa de governo do candidato Lula a revogação do artigo 142, mas a ideia foi abortada.

Radicais atacaram Supremo, Planalto e Congresso no dia 8 de janeiro. Foto: Wilton Júnior/Estadão Foto: Wilton Júnior/Estadão

PUBLICIDADE

Uma viagem de volta à Constituinte indica que a tese não foi inventada pelos bolsonaristas e já era conhecida dos petistas. Em 1987, com o novo texto constitucional em debate no Congresso, os limites sobre a atuação das Forças Armadas aparecem aqui e ali nos discursos. O PT, que na época tinha na sua bancada o deputado Luiz Inácio Lula da Silva e contava com José Genoíno na liderança, estava entre os setores da esquerda preocupados em deixar amarrado na Constituição que os militares não deveriam ter direito a voz na política.

Com a ditadura militar recém apeada do Palácio do Planalto e vivendo ainda sob o mandato de um presidente eleito indiretamente, era preciso mandar de volta os generais aos quartéis. A primeira versão original do anteprojeto da nova Constituição, redigida pelo jurista Afonso Arinos, dizia, no capítulo das Forças Armadas, que essas eram instituições organizadas “com base na hierarquia e na disciplina, sob o comando supremo do presidente da República”. E a missão dos militares seria restrita a assegurar “a independência e a soberania do País, a integridade do seu território, os poderes constitucionais e, por iniciativa expressa destes, nos casos estritos da lei, a ordem constitucional”.

Imagens da Constituinte de 1988 - Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral e Jose Fogaça FOTO AGÊNCIA SENADO Foto: Agência Senado


No início dos trabalhos, movimentos de esquerda acharam que a proposta era acanhada demais. Uma emenda popular subscrita pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e outras entidades sugerira que a Constituição fosse taxativa:

Publicidade

“As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria contra a agressão externa e a assegurar a integridade do território nacional. As Forças Armadas não poderão intervir na vida política do País”, dizia a emenda popular.

Em audiências públicas, representantes desses movimentos e também de partidos da esquerda cobraram o enquadramento explícito dos militares. “As Forças Armadas não podem continuar sendo um poder paralelo que se sobrepõe ao próprio Estado brasileiro. E o primeiro passo é fazer com que o texto constitucional não dê margem a golpes, não permita que as Forças Armadas interfiram na vida política e institucional do País. O resto a sociedade brasileira se encarregará de fazer”, discursou a então presidente da UNE, Gisela Mendonça, numa das audiências da Assembleia Constituinte.

No curso dos debates, a versão aprovada na Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições definia as Forças Armadas como instituições “organizadas com base na hierarquia e na disciplina” e sob o comando do presidente da República, ponto final. O texto por demais limitador não teria agradado militares de então.

Coube ao relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral, apresentar versão apaziguadora que acabaria prevalecendo. A redação fora construída por ele com sugestões do senador Fernando Henrique Cardoso. No final da frase que define o papel das Forças Armadas, Cabral incluiu que elas devem atuar para garantir também a “lei e a ordem” por iniciativa de qualquer dos poderes da República.

Reportagem do Estadão sobre votação do capítulo destinado às Forças Armadas na Constituinte Foto: Reprodução / Estadão

A Comissão de Sistematização começou a votar o texto da nova Constituição no final de setembro e só concluiu seu trabalho dois meses depois. No dia 6 de novembro de 1987, o capítulo sobre os militares entrou na pauta. O petista Genoíno deu o alerta:

Publicidade

“O que está em discussão é uma questão política de fundo. Ao se colocar “lei e ordem”, o que se está dizendo com esta expressão? Quando se fala “ordem”, está-se pressupondo o contrário da ordem, que é a desordem. Quando falamos “ordem”, estamos dando um sentido de que qualquer desordem pode justificar a intervenção das Forças Armadas – desordem social, desordem pública, desordem econômica”.

Comissão de Sistematização na Constituinte - José Genoíno (PT) e Fernando Henrique (PMDB) discursam

Comissão de Sistematização na Constituinte - José Genoíno (PT) e Fernando Henrique (PMDB) discursam

00:0003:14

PUBLICIDADE

Genoíno ainda avisou que, para ele, a redação, como estava, colocava os militares numa posição superior:

“Se estamos consagrando a organização democrática da sociedade, o direito de manifestação, de resistência aos abusos das autoridades, do dissenso, da divergência e da explicitação da luta entre partes opostas, não podemos colocar o poder militar como árbitro para resolver esses conflitos. Colocar “lei e ordem” é deixar esse poder de árbitro para as Forças Armadas”, discursou.

Fernando Henrique estava presidindo a sessão. Saiu da mesa e pediu para rebater o petista. O ex-ministro do regime militar e senador Jarbas Passarinho passou a comandar a audiência. Em modo cortês, FHC começou dizendo que Genoíno tinha razão porque o tema deveria ter “atenção redobrada” quando chegasse para votação no plenário do Congresso.

O professor-senador afirmou que ajudara Cabral na redação do final. Lembrou que desde 1891 as constituições davam “poder de tutela” às Forças Armadas, e que estava sendo proposta uma ruptura dessa regra. “Todos sabemos que a doutrina das intervenções frequentes e a tentativa de transformar as Forças Armadas em poder moderador acabou por gerar, no Brasil, uma situação de permanente suspeita entre a sociedade e as Forças Armadas”.

Publicidade

Sendo mais explícito, declarou que o novo texto constitucional não daria status superior aos generais:

“Quem determina, quem pede, quem tem iniciativa, quem determina a hierarquia é o poder civil. E a hierarquia diz que as Forças Armadas obedecem a quem? Ao presidente da República, que é eleito pelo voto popular direto. Fico, portanto, com o texto do relator Bernardo Cabral e declaro enfaticamente que esse texto rompe com a teoria da tutela, dotando a nossa Constituição de um instrumento moderno, que não tapa o sol com a peneira, sabe que as Forças Armadas existem e que, em certos momentos, o poder civil precisa delas, mas que elas hão de ser silentes, obedientes e hierarquizadas ao poder civil, que se fundamenta no voto popular”.

Reunião da Comissão de Sistematização. Brasília - Constituinte - 14/07/1987  Foto: Estadão / Estadão

O relator Bernardo Cabral pediu a palavra para endossar o que dissera FHC:

“Falo muito à vontade, porque foi num governo militar que fui cassado e perdi dez anos de meus direitos políticos. Por esta razão até é que vejo ser esta a melhor oportunidade – desvinculado de qualquer revanchismo – para mostrar que as Forças Armadas, neste texto, estão subordinadas ao poder civil”.

Por certas peças que o destino prega, durante aquela sessão acabou a luz no Congresso. Jarbas Passarinho anunciou que o sistema eletrônico de votação estava inativo e que a votação seria nominal.

Publicidade

A proposta de Genoíno recebeu apoio de mais 19 constituintes, mas outros 85 votaram por manter o texto de Cabral e FHC. E ficou assim até que a Constituição fosse finalmente aprovada e erguida pelas mãos de Ulysses Guimarães.

Passadas mais de três décadas, o STF se apresenta para tapar a brecha que o PT disse ter visto. Como resultado do julgamento na Corte, magistrados esperam aquartelar a parcela dos oficiais que flertou com a ruptura democrática na Era Bolsonaro.

Opinião por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública. Escreve às sextas-feiras.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.