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‘Junho de 2013 foi o início de um ciclo na política brasileira’, diz José Álvaro Moisés

Para o cientista político e professor da USP, o País está ‘no limiar de uma nova era sobre o modo como vai se expressar a relação entre governantes e governados’

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Por Marcelo Godoy
Foto: Iara Morselli
Entrevista comJosé Álvaro MoisésCientista político e professor da USP

O cientista político e professor da USP José Álvaro Moisés participou de todas as manifestações de 2013. Queria observar o que as ruas estavam dizendo e qual o significado da explosão que abalou o País. Dez anos depois, ele não tem dúvida: “Uma nova fase da República se instalou ali”.

Moisés acredita que todo um período da Nova República terminou nas ruas daquele ano, abrindo-se um novo ciclo da história. Leia, a seguir, trechos de sua entrevista.

José Álvaro Moises observou as manifestações de 2013 e suas consequências para o sistema político do País  Foto: MARCIO FERNANDES / AE

O que 2013 significou para a política brasileira?

Eu participei praticamente de todas as manifestações de 2013. Eu formei uma opinião no seguinte sentido: aquilo foi um grande sintoma do que estava acontecendo com o sistema político brasileiro. Foi a expressão pública, visível, de uma insatisfação larvar que estava presente na sociedade, em segmentos importantes que não estavam sendo devidamente compreendidos, nem processados pelas lideranças política e pelos partidos. O ano de 2013 tem de ser entendido em suas três fases mais importantes. No primeiro momento, foi a reivindicação do MPL por causa do aumento da tarifa de transporte público. Já começou a aparecer aí algo que ganhou mais força depois: uma crítica às políticas públicas e aos serviços de educação, saúde, transporte e segurança. E teve uma terceira etapa que, em grande parte, começa com a crítica aos partidos políticos, de rejeição a eles e cada vez mais vai na direção de denunciar a corrupção do sistema. São três etapas interconectadas. Foi um grande sintoma do que estava acontecendo no sistema político, pois a explosão mostrou um grau de insatisfação enorme. Houve um caudal de participação muito heterogêneo, cujo primeiro ponto é a crise da representação. As pessoas não se sentiam representadas.

Nesse cenário que o sr. traça, todo um período da Nova República terminou naquele momento?

Ah, sim. Num certo sentido é o início de um novo ciclo. Termina o anterior e começa um novo. São os primeiros sinais de que um novo ciclo estava começando. O que eu quero chamar a atenção sobre 2013 é que aquilo é como se fosse a comunicação muito intensa de segmentos da sociedade sobre sua insatisfação com o sistema político, sua crítica a ele e sua rejeição à maneira de fazer a política. Isso não foi levado em consideração, nem teve nenhuma resposta das lideranças dos partidos políticos. Simplesmente aquele conjunto de manifestações, que foram crescendo e incorporando novas dimensões, não teve resposta nem do PT nem dos partidos de oposição ou do governo.

Quais as características desse novo ciclo?

Como não teve resposta das forças democráticas ao mal-estar em relação ao funcionamento do sistema político, acabou que a resposta veio de um segmento de direita e de extrema direita que, pela primeira vez, começou a se expressar e a ganhar identidade pública, um protagonismo que até então não tinha tido. É sinal de um novo ciclo que foi deixado à margem pelas forças democráticas e acabou incorporado pelos segmentos da extrema direita. Há uma continuidade de 2013 nas manifestações que ocorrem em 2014 e em 2015, abertamente favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff. Agora, era o único desenvolvimento possível o que aconteceu e se constituiu em um novo ciclo, que acabou sendo propulsor da eleição de Jair Bolsonaro? Não. Não era a única alternativa. Faltou ação curiosamente dos segmentos que tinham feito a transição democrática e de alguma maneira estavam no governo. O PT tinha um vício de achar que, se o protesto era feito por ele, era legítimo, mas se o protesto era contra, era ilegítimo. Havia outras possibilidades de ação que não foram bem entendidas e processadas. Essa omissão abriu espaço para a direita e outros segmentos conservadores assumirem o movimento.

A forma de fazer política, mobilizando as ruas, veio para ficar?

Essas modalidades de protesto são uma sequência dos movimentos de natureza global, que se iniciam em 2011. Num certo sentido, o que ocorreu aqui em 2013 e até em 2015 tem relação com a onda global que ocorre em vários países. Essa onda coloca em tela a crise da democracia representativa, a crise da representação. Segmentos importantes de várias sociedades não estão mais se sentindo representados pelos partidos e pelos políticos e não percebem que têm canais para se comunicar com o sistema político. Sentem-se à margem dele para intervir. No caso do Brasil, é preciso entender o contexto local. Tem raízes fortes na experiência brasileira. A desconfiança dos eleitores nas instituições vinha de algum tempo. O PT parecia que ia enfrentar esses dilemas e dar outras respostas, mas as questões mais centrais da crise de representação não foram enfrentadas, pois não há conexão entre representados e representantes. Na medida em que a crise da representação não se resolve e se aprofunda, é possível que a gente vá ter novas manifestações nessa direção. Num registro de extrema direita e com tentativa de golpe de Estado, foi o que aconteceu no dia 8 de janeiro. É como se segmentos que não se sentem representados tivessem tentado invadir as instituições. O ano de 2013 marco o início de um ciclo que não se realiza. Não teve como resultado o surgimento de grandes organizações políticas que expressassem de forma mais consistente a crítica que esses segmentos fizeram ao sistema.

As redes sociais impactaram a política. O sr. acha que a tecnologia vai aprofundar mais as mudanças?

Definitivamente. Já estão impactando e vão fazer isso cada vez mais. Quem se apropriou em primeiro lugar desses mecanismos foi a direita. Agora, as forças de esquerda e as democráticas começaram a utilizá-los. Isso vai ganhar progressivamente mais corpo. A inteligência artificial vai substituir certos aspectos da mobilização e projetar fenômenos que não temos ainda clareza de suas consequências, como a manipulação de personagens, atores e discursos. Estou convencido de que isso terá cada vez mais um papel importante. É um desafio para a democracia compreender e entender em que medida isso precisa ser regulado e controlado.

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Ou seja, estamos diante do velho dilema da República. É preciso ter boas leis?

Sim. Mas ter uma resposta que não signifique restringir a liberdade e a participação. Estamos no limiar de uma nova era sobre o modo como vai se expressar a relação entre governados e governantes e a base da sociedade com o Estado.

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