EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Lula deve manter programas da Defesa e enfrentar ‘esqueletos no armário’ da Pasta

Disposição de ficar longe de temas polêmicas não deve alcançar a discussão sobre gastos feitos pelas Forças Armadas para a compra de embarcações e aeronaves

PUBLICIDADE

Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:


Caro leitor,

o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve priorizar a manutenção de três programas para a área da Defesa: o do submarino nuclear, o dos caças Gripen e o Sisfron, o sistema de monitoramento das fronteiras do País. Além de buscar a despolitização das Forças Armadas, o novo governo procura um civil para ocupar a Pasta. Entre as pessoas próximas de Lula há quem defenda os nomes do ex-ministro Nelson Jobim e do vice-presidente Geraldo Alckmin para o cargo.

Da esq. para a dir., o brigadeiro Carlos Almeida Batista Jr, comandante da Aeronáutica, o major-general Carl-johan Edstron, comandante da Força Aérea sueca e Micael Johanson, ceo da Saab, diante dos Gripens produzidos para o Brasil Foto: undefined / undefined

PUBLICIDADE

Os petistas têm consciência de que existem temas espinhosos e esqueletos no armário que o partido não vai mexer nesse terceiro mandato de Lula. Entre eles, estão as disposições de não criar uma nova Comissão Nacional da Verdade e não revogar a Lei de Anistia. Também não se vai alterar as promoções dos oficiais generais e os currículos das academias. Mas existem aqueles temas que precisarão ser enfrentados.

O primeiro será a volta aos quartéis dos milhares de militares que ocuparam cargos civis neste governo. E o fim da nomeação de outros tantos da reserva que aparelharam a Esplanada dos Ministérios. Também pode fazer parte da pauta legislativa a instituição de uma quarentena para os integrantes de carreiras de Estado que desejem entrar na política. Por fim, há os esqueletos ou temas espinhosos relacionados a decisões tomadas no passado pelas Forças.

A Marinha e o governo têm um grande abacaxi para resolver: o destino do navio aeródromo São Paulo. Comprado da França em 2000, ele foi descomissionado em 2020 e foi vendido como sucata para uma empresa turca. Mas a justiça daquele país proibiu que a embarcação fosse desmontada ali em razão do material tóxico que o navio carrega – são mais de 9 toneladas de amianto. O São Paulo teve de retornar ao Brasil e, agora, está fundeado na costa pernambucana.

Publicidade

O porta-aviôes São Paulo com caças AF-1B Skyhawk Foto: Divulgação / Marinha do Brasil

Há outros abacaxis. A queda de um avião de treinamento T-25, em Santa Catarina, que matou dois pilotos da Força Aérea, reabriu a discussão sobre a manutenção dessas aeronaves na FAB. Há 4 anos, o Alto Comando da Aeronáutica recebeu uma proposta para aposentar esses aviões por serem de manutenção cara, que demanda alto número de horas de trabalho dos mecânicos. Seu projeto é obsoleto até mesmo para definir quem tem habilidade para pilotar um avião. No mercado há aeronaves capazes de substitui-lo.

O T-25 entrou em serviço na FAB em 1971 – são mais de 50 anos. Um tenente-brigadeiro consultado pela coluna informou que a estimativa na época da proposta era que “com menos de US$ 5 milhões seria possível equipar a Academia da Força Aérea para a instrução básica”. Esse não é o único caso que devia ser examinado. A compra do Airbus A-330 seria outro. Após o fiasco da logística para levar oxigênio a Manaus na pandemia de covid-19, a FAB decidiu desembolsar US$ 80 milhões para comprar dois deles da Azul.

Antes, a Força Aérea decidira cancelar a compra de um Boeing-767-300R usado, que poderia ter feito o transporte do oxigênio com mais eficiência dos que as aeronaves de transporte de carga. Em fevereiro de 2019, ela cancelou a licitação que previa a aquisição da aeronave por US$ 14,4 milhões – fora o suporte. Mais tarde, foi feito o cancelamento de outra licitação, que previa o leasing da mesma aeronave, que estava sendo alugada desde 2016. Esta segunda decisão aconteceu em 12 de agosto de 2020, quando a pandemia de covid-19 já havia matado 100 mil pessoas no Brasil.

Os dois A-330 devem ser modificados para fazer o transporte de carga e o abastecimento de aeronaves em voo. E qual seria o problema? Os críticos da compra afirmam que até a Base Aérea do Galeão não teria pátio compatível com a aeronave carregada – ele teria de ir para um pátio civil. Seria preciso contar com apoio, escada, push back, entre outros equipamentos. Para uma viagem internacional, “full de combustível, o A-330 teria de ser rebocado até o aeroporto civil do Galeão para ser abastecido”.

Solenidade em Anápolis de entrega do aviao KC 390, da EMBRAER para FAB como a presença do presidente Jair Bolsonaro Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

Não haveria razão para mudar os pátios da FAB por causa de dois aviões. Ou como disse um brigadeiro: compramos um avião civil que vai operar em aeroportos civis e vai continuar assim mesmo quando ele for modificado. Com o dinheiro dos Airbus seria possível adquirir seis Boeings 767, sem contar com o gasto na adaptação das aeronaves para transformá-las em cargueiros e reabastecedores. E isso apesar do contrato para a aquisição dos KC -390 e do fato de que, em uma guerra futura, os drones serão mais decisivos.

Publicidade

O problema é que os civis – e aí incluídos os integrantes da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados – raramente questionam as Forças Armadas sobre a qualidade de seus gastos. É preciso que o Exército explique melhor a razão de querer ter uma aviação de asa fixa e qual a capacidade dissuasória convencional, de acordo com o conceito estratégico A2/AD – antiacesso e negação de área – dispõe. É preciso que se discuta o estado de nossas Forças de Prontidão (FORPRON) e de nossa defesa antiaérea de média e grande altura bem como quando estarão disponíveis os mísseis AV-TM 300.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Como lembrou um tenente-brigadeiro que passou para a reserva durante o governo de Jair Bolsonaro, a diferença muitas vezes entre uma nação desenvolvida e uma subdesenvolvida é a forma como elas gastam seus recursos. E não existe aqui nenhum atavismo. Em uma palestra na Universidade de Toronto, John Kennedy Galbraith reconheceu: “Governos de competência limitada receberam tarefas sociais e econômicas além de sua capacidade de atuação honesta e eficiente”. O economista dizia que os conservadores precisavam “ser advertidos de que a ideologia pode ser um pesado manto sobre o pensamento”.

O mesmo vale para os militares brasileiros. O chamado bolsonarismo agregou opacidade às decisões da caserna. Privou-se a sociedade de saber não apenas os detalhes da falta de punição ao general Eduardo Pazuello, hoje um político, que, portanto, deve se submeter ao escrutínio público. Também as compras e suas razões precisam ser transparentes. É cada vez mais consensual no futuro governo a importância de se preservar os gastos militares como instrumento de desenvolvimento do País. Mas o fim do bolsonarismo no poder faz emergir demandas, e a da transparência, talvez, seja uma das mais importantes para a cidadania.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.