Na recentíssima História do Brasil, processos de impeachment são precedidos de intenso tráfego aéreo entre Brasília e São Paulo, com jatinhos particulares transportando parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) interessados em mudar presidentes da República. Esse tráfego foi bastante intenso quando o alvo era Fernando Collor, processo no qual o vice, substituto constitucional e, portanto, maior interessado, era o mineiro Itamar Franco. Mas este nem precisou mexer-se muito, deixando a articulação no Legislativo com Fernando Henrique, no Senado, e Roseane Sarney, na Câmara dos Deputados. Collor ainda tentou reagir com a mão pesada do líder da bancada do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na Câmara, Roberto Jefferson, e os conselhos de Thales Ramalho, que tinha sido muito próximo de Tancredo Neves. A urdidura da rede defensiva para evitar a queda e suas contusões ficou a cargo do chefe da Casa Civil, Jorge Bornhausen, que ainda articularia um Ministério dito ético, com personalidades de bom nome. Mas teia e articulação não foram suficientes para dissolver o caldo fétido, mexido pelo presidente com a mão gorda e peluda de seu caixa, Paulo César Farias, vulgo Paulinho Gasolina.
No caso de Dilma Rousseff, que era ainda mais desastrada do queo alagoano nascido no Rio, tudo ficou nas mãos de Eduardo Cunha, o Caranguejo do propinoduto da Odebrecht no processo chamado de mensalão no STF. Toda a complicada conspiração que levou Collor ao solo foi substituída pela costura de uma conspiração, na qual pontificava o "quadrilhão" do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), para ocupar o poder na pessoa do vice escolhido por Lula para as chapas vencedoras de madame. A sólida aliança que havia evitado o impeachment e garantido a reeleição de Lula em plena efervescência do mensalão derreteu-se no fogo ateado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e seu lugar-tenente preferido, Romero Jucá. A aliança, que levou o constitucionalista de Tietê ao cargo máximo da República, manteve-o lá, apesar de todos os esforços de um adversário institucionalmente poderoso, mas politicamente inofensivo, Rodrigo Janot, que não alcançou a maioria de três quintos necessária dos deputados federais para depor o ex-vice.
A ex-chefe da Casa Civil de Lula começou a complicar sua defesa ao comprar uma briga desnecessária com o Centrão, que aplicou na "presidenta" e no Partido dos Trabalhadores (PT) uma espetacular surra na disputa pela presidência da Câmara. Os processos investigados pela Operação Lava Jato, com denúncias de Deltan Dallagnol e sentenças de Sergio Moro, levaram Cunha para a cadeia, da qual só saiu recentemente graças à piedade de desembargadores e ministros, que o mandaram para casa com tornozeleira. Seu lugar-tenente de todas as horas, outro alagoano na história da República contemporânea, Arthur Lira, assumiu na condição de sub-Cunha a presidência da Câmara, à qual compete, de saída, dar a partida para quaisquer processos de impeachment do presidente de plantão. Se Rodrigo Maia, seu antecessor, não autorizou a abertura do processo por medo de perder na hora da disputa do voto, não ia ser o sucessor, eleito ao lado do mineiro Rodrigo Pacheco com a ajuda de R$ 3 bilhões de emendas parlamentares, que se aventuraria a tal ousadia. Ainda mais neste momento em que foi aprovada uma manobra nas despesas obrigatórias para acomodar R$ 26 bilhões de quantias substanciais pelo relator-geral da Lei das Diretrizes Orçamentárias, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), que elevou o valor total do disponível para R$ 51,6 bilhões (o maior nível histórico), conforme levantamento recente do texto aprovado com muito atraso.
Na semana passada houve um frisson na capital depois que Lira deu a entender, num avoso cifrado em discurso na Mesa ao abrir uma sessão, avisando ao "primeiro magistrado" que poderia executar o que Maia nunca ousou com os processos engavetados. O aviso ganhou volume depois da publicação, em manchete no Estadão de domingo 28 de março, de reportagem de Felipe Frazão e André Shalders dando conta de que o aparente puxão de orelhas do sub-Cunha fora articulado em oito reuniões com pesos pesados do PIB brasileiro, ressuscitando aquela revoada de pássaros de aço dos tempos do desabamento de Collor et caterva. A notícia acendeu, segundo analistas, o sinal amarelo para os rompantes ditatoriais do ex-capitão terrorista no principal gabinete do Palácio do Planalto. Algo do gênero cria juízo ou a casa cai.
A grande importância do furo do Estadão no fim de semana é que, covarde como é, o chefe do Executivo poderia não levar sua valentia à praça para enfrentar uma conspiração do mercado com o Parlamento e, assim, mudaria sua desastrada postura sobre três pontos fundamentais, que seriam capazes de levar sua permanente obediência aos filhos e fanáticos do jardim do Alvorada para o arquivo mais próximo. São eles: a pandemia assassina, a política de apoio à garimpagem ilegal e ao desmatamento de nossa floresta tropical e a agressão subolavista a nosso maior parceiro comercial, a China. As mudanças nos Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores e até mesmo uma eventual intervenção na pasta do Meio (na verdade, mau) Ambiente, que ainda nem sequer foi aventada, significam, contudo, muito pouco para quem imagina uma eventual guinada da postura bolsonarista em relação a esses pontos. O roque de xadrez no Planalto na tarde de segunda 29 confirma que Bolsonaro, como o príncipe di Salina do Gattopardo, de Giuseppe di Lampedusa, muda o time para ele mesmo não ter que mudar. O ministro da Saúde e das Relações Exteriores continua sendo Jair Bolsonaro. Ele é que continua mandando e mesmo quem obedece não tem o lugar assegurado, como se comprovou com o intendente incompetente, fiel vassalo confesso e ainda assim demitido. E seja quem for o novo chanceler, ele não terá como se aventurar no território, desconhecido no desgoverno federal, do desafio aos caprichos negacionistas e à sólida ignorância presidencial sobre qualquer assunto que mereça um raciocínio mais complicado do que contar os dedos da mão.
*Jornalista, poeta e escritor