Pelo menos no dicionário, a palavra decoro segue válida e com o mesmo significado: é sinônimo de recato no comportamento, decência, dignidade e honradez. Já nas mais variadas casas legislativas do País, o termo parece ter caído em desuso. Na Assembleia de São Paulo, o Conselho de Ética da Casa recebeu 73 denúncias por quebra de decoro parlamentar na atual legislatura. Antes de 2019 havia apenas duas. O cenário se repete em Câmaras Municipais e no Congresso Nacional, onde xingamentos, casos de assédio e ameaças à democracia e a opositores passaram a dividir espaço com debates de interesse da população.
Os processos abertos nas últimas semanas contra o deputado estadual Arthur do Val (União Brasil-SP) e o vereador Gabriel Monteiro (PL-RJ) ilustram um cenário que tem se acentuado nos últimos anos: a exposição negativa de parlamentos, já marcada por práticas como “toma lá, dá cá”, caixa 2 e corrupção. A diferença é que, agora, a origem das representações não passa necessariamente por escândalos financeiros, mas envolve desavenças ideológicas, polarização política e desvios públicos de comportamento.
Levantamento feito pelo Estadão com base nas denúncias encaminhadas aos respectivos Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar mostra que, nos últimos dez anos, o número de queixas formais entre colegas de Câmara dos Deputados cresceu 200%. No Senado, a comparação entre 2012 e 2021 revela incremento de 1.200%. Em ambos os casos, observam-se oscilações, mas com tendência de alta. O número de representações na Câmara este ano já se iguala ao do total de 2021.
Também nas duas Casas é possível notar uma lentidão no trâmite das representações. Na Câmara, não há reuniões do conselho desde novembro do ano passado; no Senado, o quadro é ainda pior: os mandatos dos parlamentares responsáveis por avaliar a conduta de colegas expirou em setembro e não há data para nova eleição. Mas, antes mesmo disso, o conselho não se reunia. A última deliberação ocorreu em setembro de 2019.
Na avaliação de analistas ouvidos pela reportagem, as características atuais da política nacional, como a intensa polarização entre representantes dos campos da esquerda e da direita e a violência política de gênero, ajudam a explicar o fenômeno, assim como a renovação ocorrida mais fortemente de 2018 para cá em casas legislativas de todo o Brasil.
Para o cientista político Marco Antonio Teixeira, professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), a chamada “nova política” ainda está se acomodando aos ritos legislativos. “Temos, hoje, um tipo de parlamentar que busca resolver as coisas na base da gritaria. É exatamente o contrário do que se espera de um político, que, em tese, precisa saber negociar, debater. E o curioso é que isso ocorre no bojo da nova política. Demonstra, também, falta de preparo, desconhecimento de sua função”, afirmou o pesquisador.
Segundo Teixeira, alguns nomes envolvidos em processos de quebra de decoro não tinham, até suas eleições, histórico na vida pública, o que pode reforçar a dificuldade em se adaptar às condutas compatíveis com o que determina o decoro parlamentar. “Parte deles nem entrou na política fazendo política, mas pelo holofote obtido em outros meios, como a internet”, disse o professor da FGV.
A cientista política Graziella Testa, da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV, também cita a renovação como parte da explicação. “Os espaços legislativos eram, até então, dominados por pessoas que já estavam na política. E, quando as mesmas pessoas ocupam os mesmos espaços há muito tempo, as regras informais funcionam bem. Já se tem na cabeça o que é ou não razoável e, por isso, não é preciso punir”, observou Graziella. “A lentidão nesse processo de adaptação à vida parlamentar é que pode resultar em denúncias formais”, completou.
Na atual legislatura, a Câmara dos Deputados cassou dois mandatos: o da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de mandar matar o marido, e o do deputado Boca Aberta (Pros-PR), após decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que o considerou inelegível por ter sido cassado antes.
São, ao todo, 19 os deputados federais denunciados ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar desde 2019. Daniel Silveira (PTB-RJ) é, junto com Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o recordista. O deputado que já foi preso e é acusado pelo Supremo Tribunal Federal de ameaçar a Corte e seus ministros é alvo de nove representações. Em uma delas, o grupo suspendeu o mandato do parlamentar por seis meses, mas, até hoje, a decisão não foi levada a plenário para ser ratificada como manda o regimento.
Já no Senado, quem mais soma queixas é Randolfe Rodrigues (Rede-AP). E, em sua maioria, por críticas feitas a representantes do governo Jair Bolsonaro (PL) ou mesmo ao presidente de forma pessoal. O mesmo pode se dizer do senador Jorge Kajuru (Podemos-GO), o segundo da lista.
Para o consultor sênior na Transparência Internacional, Michael Mohallem, o conteúdo das queixas prova que as ações de quem denuncia são também um cálculo político. “Muitas vezes o que se busca é uma vantagem política no uso da representação, que ganha um efeito simbólico e serve para dialogar com as bases.”
Não à toa, segundo Mohallem, são os casos de maior repercussão que têm mais chances de resultarem em algum tipo de punição. Características que, na avaliação do professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco Filipe Campello, retratam o “moralismo de ocasião” do brasileiro.
“O famigerado cidadão de bem aprova ou reprime ações muito mais de acordo com interesses ou preferências do que movido de fato por compromisso ético. É a máxima dos aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”, disse Campello.
Para o professor, é esse mesmo moralismo de ocasião que explica por que a defesa da bandeira anticorrupção convive com a microcorrupcão em esfera privada. “A meu ver, isso ocorre dentro desse recorte de seletividade da crítica. Basta ver a dificuldade de grupos pró-Bolsonaro em reconhecer recorrentes denúncias de corrupção no governo federal.”
No Congresso, o número de denúncias – e não necessariamente de casos (muitas queixas são repetidas) – pode ser ainda maior, já que cabe aos presidentes da Câmara e do Senado encaminhar pedidos feitos por parlamentares ou partidos aos grupos que devem avaliá-los.
Atualmente, ao menos 12 ações aguardam essa tramitação na mesa de Arthur Lira (Progressistas-AL). Entre elas, um pedido de cassação de Eduardo Bolsonaro. O filho do presidente se tornou alvo de representação por quebra de decoro depois de debochar, pelas redes sociais, da tortura sofrida pela jornalista Míriam Leitão durante da ditadura.
No último dia 3, o deputado escreveu “ainda estar com pena da cobra” em referência ao fato de Míriam ter ficado presa nua e grávida em uma sala com uma jiboia. No mesmo dia, a jornalista havia publicado um texto no qual dizia que o chefe do Executivo era inimigo da democracia. Pas redes, Eduardo lamentou o pedido de cassação por uma “piada”.
“O parlamentar representado deixa mais uma vez evidenciado o seu caráter misógino e machista. A violência política é calcada no menosprezo, discriminação e inferiorização do feminino, e objetiva impedir e anular o exercício dos direitos das mulheres, comprometendo a participação igualitária em diversas instâncias da sociedade”, relata a representação assinada por lideranças do PSOL e da Rede ainda carente de encaminhamento.
A cientista política Graziella Testa disse que a reação ao comentário é sinal de que a sociedade está mais incomodada com a violência política, especialmente com a violência política de gênero. A repercussão dos casos ocorridos na Assembleia Legislativa de São Paulo seriam exemplo dessa espécie de conscientização social.
Ano passado, o deputado estadual Fernando Cury (União Brasil) foi suspenso por seis meses após apalpar os seios da colega Isa Penna (PCdoB). Na terça-feira, 12, o Conselho de Ética da Casa aprovou, por unanimidade, um relatório que pede a cassação do mandato de Arthur do Val por falas sexistas sobre refugiadas ucranianas. Durante uma viagem à fronteira do país em guerra, ele afirmou que as ucranianas “são fáceis porque são pobres”, entre outros comentários no WhatsApp.
Na Câmara do Rio, as denúncias contra o ex-policial militar e youtuber Gabriel Monteiro (PL) são ainda mais graves. O parlamentar é investigado por assédio sexual, estupro, manipulação de vídeos na internet e uso indevido de funcionários públicos. Ele nega e responde a processo interno.
Nos últimos meses, episódios que contestam o decoro de parlamentares se repetem pelo País. Na Câmara de São Paulo, até mesmo colegas de partido não se entendem. As vereadoras Cris Monteiro (Novo) e Janaína Lima (hoje no MDB) foram flagradas se estapeando no banheiro ao lado do plenário. O caso aconteceu no ano passado, quando a Corregedoria também recebeu denúncias de racismo, agressão verbal e injúria. Foram 21 no total – em 2012, só uma.
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