O relatório final da Polícia Federal (PF) sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado no Brasil cita diversos deputados federais e senadores aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que teriam algum tipo de participação no movimento antidemocrático. Figuram no documento, por exemplo, Marcos do Val (Podemos-ES), Carla Zambelli (PL-SP) e Alexandre Ramagem (PL-RJ). Dos parlamentares citados no relatório e na reportagem, apenas Ramagem foi indiciado por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
O documento com 884 páginas foi enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que retirou o sigilo e o encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) na terça-feira, 26. O Estadão aguarda retorno dos citados, procurados diretamente ou por assessores. Ramagem publicou nesta terça-feira, 26, em sua rede social não haver crimes, mas “só narrativas para perseguição”. “Narrativas e invenção de crimes. Criminalizam quem age dentro da lei. Já abusos se tornaram parte do sistema”, disse. O deputado federal Filipe Barros afirmou que participou de uma reunião para atualizar autoridades sobre tramitação da PEC do voto auditável, que era relator. “Qualquer comentário além disso não passa de mera ilação”.O senador do Val afirmou que participar de reunião não é crime (leia mais abaixo). Apenas Tenente Portela não foi encontrado. O espaço está aberto.
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Outros parlamentares também são mencionados no relatório da Polícia Federal, mas de forma secundária e sem grande relevância, aparecendo apenas como parte da contextualização dos fatos, sem papel identificado na empreitada investigada. Entre eles estão o senador Eduardo Girão (Novo-CE) e os deputados Eduardo Pazuello (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Marcos do Val e o plano para gravar Moraes
Citado 17 vezes no relatório, o senador Marcos do Val ganhou um capítulo à parte intitulado “Das Ações do senador Marcos do Val”, que detalha seu envolvimento na suposta trama golpista. O documento descreve diversos momentos em que o senador esteve ligado aos eventos investigados, incluindo uma reunião realizada no dia 8 de dezembro de 2022, no Palácio da Alvorada, em Brasília, com o então presidente Bolsonaro e o ex-deputado federal Daniel Silveira.
De acordo com as apurações, Bolsonaro e Silveira tentaram persuadir do Val a gravar clandestinamente o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O plano visava gravar declarações de Moraes que pudessem sugerir supostas ações inconstitucionais, enfraquecendo sua credibilidade e criando justificativas para medidas excepcionais, como a decretação de um Estado de Defesa ou uma intervenção federal, com o objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e garantir a permanência de Bolsonaro no poder.
As investigações também indicaram que Marcos do Val adotou estratégias para dificultar o andamento das apurações. O senador chegou a revelar publicamente o plano de gravar Moraes, alegando que o fez para “proteger a democracia”. No entanto, em mensagens trocadas com Carla Zambelli, do Val admitiu que suas declarações faziam parte de uma estratégia calculada para atrair a atenção da mídia e impulsionar a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Em uma troca de mensagens com Zambelli, o senador celebra a repercussão de suas declarações, afirmando: “Bom, acho que eu consegui chamar a atenção da imprensa, né? Agora vamo pra CPI.” Na conversa, do Val compartilha uma lista das matérias publicadas na imprensa “em um único dia” sobre as informações que havia revelado.
Ao Estadão nesta quarta-feira, 27, do Val afirmou que não partiu de Bolsonaro a ideia de gravar Moraes, mas de Silveira. “Tudo fumaça. Nada vai para frente. No dia da reunião, que não é crime se reunir, o Silveira veio com essa ideia. O Bolsonaro me olhou na mesma hora (sendo contra)”. Toda hora aparecia gente com ideias do tipo. Nada partiu de Bolsonaro, posso te garantir”, afirmou. Do Val diz ser perseguido, como o ex-presidente.
Carla Zambelli: ‘Brigadeiro, o senhor não pode deixar Bolsonaro na não’
A deputada federal Carla Zambelli é citada nominalmente nove vezes no relatório final das Operações Tempus Veritatis e Contragolpe. Além da troca de mensagens com do Val, a parlamentar teria abordado um tenente-brigadeiro durante formatura na Força Área Brasileira (FAB), em Pirassununga, interior de São Paulo.
De acordo com a PF, o tenente-brigadeiro Baptista Junior afirmou que Zambelli afirmou que ele não poderia abandonar o então presidente Bolsonaro. “Baptista Junior relatou que as pressões para anuir ao golpe de Estado ultrapassaram as redes sociais. O depoente disse que no dia 8 de dezembro de 2022, após a formatura dos aspirantes da FAB, na cidade de Pirassununga, o depoente foi interpelado pela deputada federal Carla Zambelli, com a seguinte indagação: “Brigadeiro, o senhor não pode deixar o presidente Bolsonaro na mão”. O depoente afirmou que entendeu que a deputada estava propondo que aderisse a um ato ilegal”, diz trecho do relatório da Polícia Federal.
Em março deste ano, o Estadão mostrou que Baptista Junior rechaçou o pedido de Zambelli. Em seu depoimento à PF, ele afirmou que não aceitaria o pedido.
“Deputada, entendi o que a senhora está falando e não admito que a senhora proponha qualquer ilegalidade.” À época, a defesa de Zambelli afirmou que nunca fez pedido ilegal, não se recorda do fato e “se, porventura, pediu acolhimento, o fez por causa da derrota nas eleições”.
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Mourão teria negociado saída de Bolsonaro
O ex-vice-presidente de Jair Bolsonaro, senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), é citado em prints de uma conversa entre o tenente-coronel Sérgio Cavaliere — identificado pela PF como integrante do “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral” — e Mauro Cid, ocorrida em 4 de janeiro de 2023.
Segundo as mensagens, Cavaliere compartilhou informações atribuídas a um interlocutor identificado como “Riva”, que relatou que Mourão teria negociado com outros generais a “saída do 01″, uma referência à renúncia ou ao afastamento de Bolsonaro da Presidência da República. Caso Bolsonaro deixasse o cargo, Mourão assumiria a Presidência.
Ainda na conversa, “Riva” afirma que os militares teriam rasgado um documento assinado por Bolsonaro, possivelmente relacionado ao decreto de golpe de Estado. Ele menciona: “Rasgaram o documento que o 01 assinou”, indicando que houve resistência dentro das Forças Armadas à tentativa de implementar a medida golpista.
Ramagem e o aparelhamento da Abin
O relatório coloca o deputado federal Alexandre Ramagem, que ocupava o cargo de diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em 2022, como uma figura central nas ações para deslegitimar as instituições democráticas e o processo eleitoral. Citado 67 vezes, Ramagem é associado à produção de relatórios ilícitos, à disseminação de desinformação para subsidiar os ataques de Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e ao Judiciário.
De acordo com a investigação, Ramagem utilizou a estrutura da Abin para produzir documentos que alimentaram ataques contra as urnas eletrônicas, além de ministros do STF, como Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Um dos principais materiais identificados pelos investigadores foi o arquivo “Presidente TSE informa.docx”, que antecedeu a live de Bolsonaro, em 29 de julho de 2021, na qual o então presidente apresentou alegações sobre fraudes no sistema eleitoral.
Ramagem também é apontado como peça central na disseminação de notícias falsas, incluindo alegações de fraudes nas eleições de 2018. A investigação revela que o ex-diretor da Abin criou grupos técnicos para investigar supostas falhas nas urnas eletrônicas e fornecer dados que embasassem os ataques de Bolsonaro e seus aliados.
Filipe Barros e o discurso contra urnas
O deputado Filipe Barros (PL-PR) é citado no relatório da PF por propagar mentiras sobre as urnas eletrônicas. De acordo com a PF, ele participou de uma apresentação em julho de 2022 com a presença do então presidente Bolsonaro para atacar o sistema eleitoral brasileiro.
“Em sua fala, o deputado federal, novamente, utiliza informações falsas relativas à invasão do sistema administrativo do TSE para alegar uma possível vulnerabilidade nas urnas eletrônicas, que possibilitaria fraudar as eleições, repetindo o conteúdo disseminado na live realizada em 29 de julho de 2021, objeto de inquérito pela Polícia Federal, que comprovou a autoria e participação na preparação e difusão de informações sabidamente falsas pelos investigados”, diz trecho do documento.
A referida live foi realizada por Bolsonaro em julho de 2021 com ataques às urnas eletrônicas, o que se tornou alvo de inquérito no STF. Bolsonaro disse diversas vezes que até mesmo a eleição que venceu, em 2018, havia sido alvo de fraude. O então presidente afirmava ter tido mais votos do que os registrados na ocasião em que venceu Fernando Haddad (PT).
O suplente de Tereza Cristina que ajudou no planejamento
O relatório identifica Aparecido Portela, conhecido como Tenente Portela, como uma figura relevante na rede de apoio às manifestações antidemocráticas que culminaram nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Primeiro suplente da senadora Tereza Cristina (PP-MS), posição para a qual teria sido indicado por Bolsonaro, Portela é apontado como intermediário entre o governo Bolsonaro e os financiadores das manifestações em Mato Grosso do Sul. A senadora não é apontada como tendo qualquer papel no caso.
De acordo com as investigações, mensagens trocadas com Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro, revelam que Portela utilizava o termo “churrasco” como codinome para o golpe de Estado. Em uma das conversas, ele relatou pressões de financiadores, referindo-se ao grupo como “o pessoal que colaborou com a carne”, enquanto cobrava a execução do plano. Apesar da hesitação de Cid, Portela demonstrava otimismo com a possibilidade do golpe, afirmando: “Vamos vencer de alguma forma.”
O relatório também detalha sua proximidade com Bolsonaro, destacando visitas frequentes ao Palácio da Alvorada no final de 2022 e uma amizade de longa data com o ex-presidente, construída desde que serviram juntos no Exército. Além disso, aponta que Portela teve um papel ativo na solicitação e obtenção de recursos para financiar os atos antidemocráticos, funcionando como elo entre financiadores e o governo Bolsonaro.
Deputado estadual e as manifestações de 2022
O relatório da Polícia Federal menciona Tomé Abduch (Republicanos), deputado estadual eleito por São Paulo e líder do movimento “Nas Ruas”, como uma figura que desempenhou papel relevante na mobilização de manifestações em Brasília em 2022.
De acordo com o documento, em 11 de novembro daquele ano, Mauro Cid compartilhou com um interlocutor chamado “Joe” um link de um vídeo em que Abduch convocava apoiadores para participarem de uma manifestação marcada para o dia 15 de novembro, na Praça dos Três Poderes.
No vídeo, amplamente divulgado, Abduch justificava o ato com base em uma nota assinada pelos comandantes das Forças Armadas, que ele interpretou como um respaldo às manifestações.
Embora tenha pedido que os participantes evitassem faixas pedindo intervenção militar, sua mensagem, segundo os investigadores, contribuiu para reforçar a narrativa de contestação ao sistema democrático.
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