Fabio e Munir Candalaft Junior, de 53 e 55 anos, praticamente cresceram na região entre o Largo e a Rua do Arouche, na República, centro de São Paulo. Quando jovens, os irmãos de origem libanesa trabalharam com a mãe e o pai em lojas da família, no período em que o entorno era um dos mais nobres da cidade. Já adultos, eles migraram de bairro e escolheram outras profissões, mas, há menos de um ano, resolveram novamente se voltar para o local ao montar, no imóvel construído no início do século 20 e comprado pela família na década de 70, o espaço cultural e de eventos No Arouche.
Com janelas multicoloridas, o sobrado ganhou uma “cara 2017” após os irmãos Candalaft observarem que muitos filhos de amigos haviam se mudado para o centro. Aberto dois fins de semana por mês, o espaço reuniu 25 expositores, apresentações musicais e 2 mil visitantes nos dois primeiros dias.
Na parte interna, traz grafites de 12 artistas convidados pelo arquiteto do projeto, Gabriel Menezes, do Estúdio 011. “A ideia é trazer a arte de rua para dentro do prédio, para quem entra se sentir na rua”, ressalta o arquiteto.
A 1,5 quilômetro dali, um casarão foi inaugurado neste mês na esquina da Rua Guaianases com a Alameda Nothmann, em Campos Elísios. O proprietário, que recebeu a casa há dois anos, batizou o local de Casa Don’Anna em homenagem à sua avó Anna Silva Telles, primeira moradora do imóvel. O casarão poderá ser reservado para eventos e terá um espaço de coworking; o porão abrigará o Café Paulista; e o quintal receberá o Jardim das Orquídeas, um ponto de encontro para amantes da planta, de acordo com um dos responsáveis pelo espaço, Sergio Oyama.
Conjunto de imóveis
Construída em 1912 com projeto do escritório de Ramos de Azevedo, a Casa Don’Anna foi tombada pelo Estado em 2013 dentro do “Conjunto de Imóveis do Campos Elísios”.
Dele, faz parte também a fachada de sobrados da esquina da Alameda Barão de Piracicaba com o Largo Coração de Jesus, na antiga Cracolândia, que passa por um processo de revitalização, bancado pelos irmãos Flávio e Célia Gomes Torres, de 55 e 51 anos, respectivamente.
De acordo com Flávio, a recuperação da fachada é um antigo sonho de seu pai, o imigrante português Isolino Gomes Torres, que, a partir da década de 1950, comprou aos poucos os sete pequenos imóveis que hoje compõem o casarão. A ideia, contudo, antes era inviável por causa da aglomeração de usuários de droga na região.
“O prédio merecia um trato, até pela situação do bairro em si. É nossa obrigação colaborar”, diz. “Se fosse em Paris, um prédio lindo desse, a gente estaria feito, mas o contexto não valoriza”, completa o empresário.
Mesmo nos momentos mais difíceis, Célia não cogitou vender o imóvel, que assumiu com o irmão após o pai adoecer, em 2014. “Uma vez eu vi o forro: as madeiras são encaixadas de um jeito diferente, lindo”, conta.
Ela afirma que o imóvel foi um dos que menos sofreu com a degradação da região, porque o pai era criterioso com os moradores, muitos dos quais são os mesmos há décadas, como a diarista Maria Júlia Santana, de 54 anos. Amante de “coisas antigas”, ela diz que não se imagina vivendo em outro local. “Casei aqui, tive filha aqui (hoje com 27 anos). Quando precisava, o seu Isolino até dava uma olhada nela”, conta.
Autoestima
Feita pela Companhia do Restauro, a obra é uma “conservação para aumentar a autoestima do bairro”, define o diretor e arquiteto Francisco Zorzete. A restauração total é avaliada em mais de R$ 1,5 milhão, valor que a família não pretende investir agora.
Neste momento, o destino da região é avaliado por um conselho, composto por representantes da sociedade civil e do poder público, criado pela Prefeitura, que chegou a considerar a demolição no início do ano. “Todos os imóveis com fachadas tombadas serão preservados em qualquer proposta de requalificação do perímetro”, disse o Município, em nota.
Proprietário relata cansaço em luta por restauração
O número 267 da Rua Pedroso foi o lar de quatro gerações da família Sohn. Mais do que isso, contudo, o casarão, construído em 1927, é uma causa abraçada há 15 anos por um de seus herdeiros, o ator Paulo Goya, de 66 anos. Mesmo integralmente dedicado ao imóvel, tombado em 2002 pelo Município, ele relata cansaço nessa luta.
Desde 2005, calcula ter gasto quase R$ 1 milhão, junto com a irmã e dois primos, em obras e manutenção do Espaço Cultural Dona Julieta Sohn, conhecido como Casarão do Belvedere. “Se eu, com toda a minha experiência, minha vontade e meu desejo de preservação enfrento montanhas intransponíveis, imagina o coitado do proprietário que tem um imóvel de 50 metros quadrados tombado como bem”, lamenta ele, que relata ter recebido a notícia do tombamento por uma ligação de uma familiar que estava na ocasião “aos prantos”.
Com um fomento federal recentemente barrado na Justiça, Goya afirma que a estrutura do telhado da casa está tão comprometida que grande parte das atividades ocorre em um imóvel anexo. Mesmo com as dificuldades, ele afirma, que não vai desistir. “Até o fim da minha vida me verão defendendo esse patrimônio, essa casa, esse projeto. Não me calarão.”
A criação de um fundo para imóveis tombados é defendida pela arquiteta Nadia Somekh. “Os proprietários nem sempre têm recursos necessários para o restauro”, diz. Segundo ela, embora seja uma das principais alternativas para obter recurso, a Transferência do Direito de Construir (TDC) é “incipiente” por cauda da quantidade de tombamentos da cidade, mais de 3,5 mil.
Na prática, o TDC permite a “venda” da metragem construtiva não utilizada do terreno tombado para um terceiro, que poderá aplicá-lo em outro local.
Para o presidente do departamento paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), Fernando Túlio Salva Rocha, ainda falta apoio técnico público para orientar os herdeiros sobre como conseguir recursos para requalificar propriedades antigas tombadas da cidade.