‘Não é só pôr rampa ou vaga de estacionamento, é preciso considerar todo trajeto’, diz especialista

Maria Tsavachidis, CEO da EIT Urban Mobility, abordou a inclusão de pessoas com deficiência nos transportes, durante participação no Summit Mobilidade 2023

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Por Fernando Beagá
Atualização:
Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO
Entrevista comMaria TsavachidisCEO da EIT Urban Mobility

O desafio de tornar a mobilidade urbana sustentável passa obrigatoriamente por um transporte acessível, enfatizou Maria Tsavachidis em sua palestra “Soluções para um Transporte Mais Inclusivo”, no Summit Mobilidade 2023, evento promovido pelo Estadão. Ela, que é CEO da EIT Urban Mobilty (braço do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia, da União Europeia), destacou que a questão vai muito além dos dispositivos de acessibilidade às pessoas com deficiência — imprescindíveis, mas apenas parte das soluções.

“É preciso garantir que todos possam se mover livremente. Não é só por rampa de acesso ou reservar vaga de estacionamento, é preciso considerar as necessidades dos usuários ao longo de todo o trajeto”, afirma.

Tsavachidis defende que as cidades precisam entender as necessidades dos diferentes grupos de usuários para que todas as pessoas se desloquem com segurança e conforto. “Crianças podem ir de bicicleta para a escola? Mulheres podem usar transporte público sem serem assediadas? Pessoas de baixa renda podem ir para o trabalho sem gastar muito de sua renda e de seu tempo?”, provocou a palestrante, ampliando o entendimento sobre inclusão.

Nas respostas às perguntas elaboradas durante o evento pelo mediador Victor Vieira, editor de Metrópole do Estadão, e pela plateia, Tsavachidis também falou sobre a urgente necessidade de aumentar investimentos em inovação para alcançar as metas da Agenda 2030, da ONU.

Maria Tsavachidis mora em Barcelona e destacou que a inclusão começa com o fornecimento de transporte público acessível a todos Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Em qual país do mundo já temos uma mobilidade preparada para pessoas com deficiência? Conseguimos aplicar esse exemplo no Brasil?

A mobilidade é algo muito local, não podemos falar sobre países, mas sobre cidades. E não há um projeto que valha para todas as cidades. Prefiro olhar para o que são boas práticas e aprender com elas. Há ótimos exemplos em todos os lugares, mas temos que dimensioná-los.

Tomando como exemplo Barcelona, onde você mora, como uma cidade pode se tornar mais inclusiva e eficiente?

A inclusão começa com o fornecimento de transporte público acessível a todos. O metrô de Barcelona não é muito acessível porque tem muitas escadas... Mas é difícil de mudar porque é bem antigo e a infraestrutura, muito cara. Os trens e ônibus são muito mais acessíveis e ampliar essa rede é uma medida essencial que, felizmente, Barcelona já está tomando. Outra boa medida é o conceito de superquadras, que proíbem o tráfego em quarteirões que são arborizados e têm playgrounds. O espaço é dado às pessoas, o que inclui garantir que haja transporte público para chegar a essa superquadra, tornando-a realmente inclusiva em termos de mobilidade para todos e não apenas para quem tem carro.

Pensando na desigualdade social brasileira, como levar a inclusão na mobilidade urbana para regiões periféricas?

Dando-lhes recursos. Nada muda sem recursos. Não apenas financeiros, mas proporcionar estruturas para as pessoas participarem dessa mudança. Elas querem se engajar na melhoria de suas comunidades. Dê a elas espaços para transformar os estacionamentos do bairro em pequenas áreas verdes, por exemplo. E quando uma ação funcionar, que se forneça a verba para que se estabeleça permanentemente.

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Quais os fatores fundamentais para que um plano de inclusão seja, de fato, disruptivo e eficaz?

Primeiramente, tem que ser sobre algo que as pessoas se preocupam, que realmente mude a vida delas positivamente. Tem que ser em torno de valores realmente comuns, com os quais todos se preocupam. Isso fará com que as pessoas colaborem muito mais facilmente, porque não será sobre ser a favor ou contra carros. Será sobre “como podemos criar espaços para as crianças”. E, em seguida, a solução pode incluir os carros, e caminhada, ciclismo, uma mistura de medidas. Outro fator importante é a experimentação. Para serem aceitas, as inovações não podem ser impostas. As pessoas têm que sentir que podem decidir sobre o que acontece em suas comunidades. Se funcionar, torna-se permanente. Se não funcionar, tenta-se outra coisa.

Existe uma mentalidade de cobrança do poder público por soluções de mobilidade e inclusão. Como é possível engajar soluções criadas pela iniciativa privada?

O setor privado é essencial para a transformação, é quem entrega as soluções inovadoras. Startups podem apresentar novas soluções muito rapidamente. Então, precisa ser uma colaboração. O poder público é dono do espaço, opera a maioria dos sistemas de transporte e é quem vai comprar a inovação. Mas não conseguirá financiar sozinho. Portanto, há muita necessidade de investimento e o setor privado já está envolvido, não vejo que precisem ser estimulados. Vemos muitas startups de mobilidade e o setor automotivo voltado totalmente para o elétrico. É uma corrida por tecnologia e soluções verdes. Já estamos no caminho certo para inovar e apoiar a transição do setor de mobilidade, mas temos que juntar os dois lados.

Pensando em pedestres e em outros modais, quais as particularidades da inclusão na mobilidade ativa?

A mobilidade ativa é importante para a inclusão porque é acessível. Os mais pobres também podem pedalar, mas se tiverem infraestrutura para fazer isso com segurança. Infelizmente, em muitas cidades não podemos pedalar com segurança. Ainda menos os grupos mais vulneráveis, como crianças e mulheres. Muitas mulheres têm medo de andar de bicicleta porque não aprenderam, há culturas onde não é bem visto que pedalem... Iniciamos um programa para mulheres ensinarem outras mulheres. Andar de bicicleta, caminhar, tudo isso é liberdade, mas, para ser inclusivo, precisa ser seguro e saudável, o que não é em cidades com níveis de poluição muito além do que a Organização Mundial da Saúde recomenda. Temos que garantir que haja ar puro e que a mobilidade ativa seja realmente uma boa alternativa ao carro.

Podemos considerar que o desenvolvimento de experiências virtuais permite que as pessoas sejam incluídas sem sua presença física?

Com a pandemia, aprendemos como a tecnologia pode aliviar a necessidade de deslocamentos — como estamos fazendo agora, com minha participação remota. Sempre olhei mais para esse ângulo da redução da demanda de tráfego, mas concordo que a tecnologia é uma facilitadora para mais inclusão.

Como quebrar o tabu de que as soluções inclusivas começam pela aquisição de um carro?

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Olhando para números, 20% das pessoas mais pobres do mundo têm algum tipo de deficiência; entre 80% e 90% das pessoas com deficiência em idade ativa estão desempregadas. Então, como elas comprarão um carro? Inclusão é oferecer mais opções para que elas se desloquem sem carro. É preciso mudar essa narrativa de que o carro é um meio de ser livre. Liberdade, em termos de inclusão, significa não ter um carro; habilitar para poder se deslocar para onde quiser.

Seria possível estabelecer um plano de mobilidade inclusiva num ecossistema como o brasileiro, centrado no carro individual?

Todas as projeções mostram que, mesmo que se vendam apenas carros elétricos a partir de agora, ainda há a frota atual, que estará nas ruas por mais 10 ou 20 anos. Levará muito tempo para que todos sejam totalmente elétricos e com zero emissões. O que fazer enquanto isso? Temos que reduzir as emissões de CO2 agora e a única maneira é reduzir o tráfego de carros individuais. Com o que substituir? Transporte público! Precisamos investir em infraestrutura e melhorar a acessibilidade para atrair mais pessoas ao transporte público. Em seguida, impulsionar medidas para desencorajar o tráfego de carros, como aumentar os preços para estacionar e baixar os limites de velocidade. Trata-se de custo, no final das contas.

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