Quadros do Museu do Ipiranga criaram imaginário nacional, dizem especialistas

'Independência ou Morte', de Pedro Américo, garantiu a São Paulo uma imagem que associa diretamente o momento histórico Independência à cidade

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O conjunto de obras do Salão Nobre do Museu do Ipiranga foi pensado para exaltar a história do País. À exceção de Independência ou Morte, obra de Pedro Américo (1843-1905) já instalada no cômodo no centenário, todas foram encomendadas aos artistas Oscar Pereira da Silva (1867-1939) e Domenico Failutti (1872-1923). 

'Independência ou Morte', de Pedro Américo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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“Juntas, essas telas formam um dos mais importantes conjuntos de pinturas de história do país e certamente o mais destacado sobre representações de episódios e personagens da Independência”, explica o historiador Paulo César Garcez Marins, pesquisador do museu. “São muito conhecidas pelos brasileiros, pois ilustram centenas de livros didáticos do país desde o início do século 20, assim como cédulas, moedas, medalhas e objetos decorativos.” “A estrela é certamente Independência ou Morte. É a mais conhecida representação da Independência entre nós. Foi custeada pelo governo imperial e inaugurada em Florença na presença do imperador Pedro II e da Rainha Vitória da Inglaterra. Antes do Museu, viajou até Chicago, onde foi exibida na Exposição Internacional de 1893. Sua realização e exibição no Museu a partir de 1895 garantiu a São Paulo e ao Ipiranga uma imagem que associa diretamente a Independência à cidade, embora as negociações políticas no Rio de Janeiro e as batalhas na Bahia e no Norte tenham sido decisivas para a consolidação da separação política entre Brasil e Portugal”, contextualiza. “A pintura foi reproduzida ou reinterpretada inúmeras vezes, incluindo no filme homônimo de Carlos Coimbra, que tentou reproduzir a cena do quadro em torno de Tarcísio Meira, como Pedro I, e até em revistas da Turma da Mônica.”

            Professor na Universidade Estadual do Maranhão, o historiador Marcelo Cheche Galves cita o livro ‘Comunidades Imaginadas’, do historiador Benedict Anderson (1936-2015), para contextualizar o fenômeno decorrente da exposição do Salão Nobre. “É o processo de tornar as comunidades emocionalmente plausíveis e politicamente viáveis, ou seja, como acaba sendo construída a nação a partir de um conjunto de recursos”, aponta ele. “Um desses recursos é projetar um passado de glória, um passado que una em comunhão aqueles que teriam origem na mesma nação.”

            “A obra de Pedro Américo, por exemplo, imagina um país naquele século 19 a partir do que se entendia como princípios básicos de uma grande nação, seus grandes heróis e grandes batalhas. É um tipo de narrativa que, antes de tudo, funciona como manifestação nacional”, explica o historiador.

            Ele ressalta que o fato de o conjunto ter sido planejado para as comemorações do centenário da Independência une o “espaço privilegiado” para a celebração — ou seja, o Museu do Ipiranga — ao “momento oportuno para projetar essas narrativas”. “Isso remetia ao próprio poder de São Paulo, a ideia de pensar o lugar de São Paulo na formação da nação”, comenta Galves. “Evidentemente que a figura de dom Pedro é trazida como ruptura heróica. Dá para pensar nesse conjunto de quadros como uma proposta de narrativa nacional, de glórias, de ruptura com as cortes portuguesas e ereção de um novo país a partir de figuras fundantes.”

Professora na Universidade Tufts, nos Estados Unidos, na Universidade Estadual de Campinas, e autora do livro Arte Não Europeia: Conexões Historiográficas a Partir do Brasil, a historiadora da arte Claudia Avolese lembra que esse era o programa de Taunay — e estava presente em todo o museu. “O projeto, profundamente identificado com as elites paulistas do período, visava a consolidar e visualizar a narrativa da centralidade de São Paulo para a construção da nação, enfatizando o papel dos bandeirantes paulistas no processo de unificação do território nacional”, afirma ela.

Se o Salão Nobre contava essa história da formação do País, o andar térreo era ocupado, no projeto expositivo de Taunay, as salas de iconografia paulista, com a história do Estado. “A posição do salão nobre no andar acima daquele da história paulista, acessado pela escadaria monumental, completa a narrativa de Taunay que posicionava São Paulo como a base a partir da qual a nação pôde ser construída”, conta Avolese. “A narrativa desenvolvida por Taunay é ainda hoje parte da história ‘oficial’ ensinada nas escolas.”

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Ela acredita que a equipe de curadores e educadores do museu tem “papel fundamental”, na própria ideia museológica do século 21, de mediar e provocar essas discussões com o público. “A equipe é altamente qualificada para desenvolver esse trabalho”, ressalta.

“O salão nobre apresenta muitas oportunidades para um engajamento crítico com a história de São Paulo e do país. A presença dos retratos de Maria Quitéria e de Dona Leopoldina com seus filhos, ambos de autoria de Domenico Failutti, é uma delas, permitindo discussões à cerca da condição feminina no Brasil de ontem e de hoje, por exemplo”, exemplifica a historiadora. “Preservar um local de memória como este é uma oportunidade fundamental para apreciação da história e da arte criadas no passado, mas que sem dúvida ainda repercutem e estruturam nosso presente.”

Avolese frisa que o ambiente é “o testemunho material dos esforços de auto representação das elites paulista do início do século XX no imaginário nacional”. “Evidentemente devemos ser críticos com relação a esses discursos. Porém, a sua presença material justamente gera a oportunidade de crítica e de revisão. Gera novas narrativas e novas histórias. A preservação destas obras e de seu contexto é assim peça fundamental para reflexão crítica sobre o passado e o presente”, enfatiza.

Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez vê o Salão Nobre como a convergência de duas narrativas. A primeira é a expressa pela tela ‘Independência ou Morte’. “Que nasceu com a intenção de ser icônica, da exaltação da Monarquia, da lealdade e do protagonismo de São Paulo na separação política e na sustentação política do Império”, comenta. “Foi concebida na década de 1880, quando as críticas e a oposição à Monarquia estavam em ascensão e o movimento republicano tomava corpo justamente na província de São Paulo.”

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“Outro [conjunto narrativo] é o das demais telas, composto entre 1921 e 1925 e que completavam a ideia do protagonismo histórico e político nacional de São Paulo nos destinos do Império e da nação brasileira”, prossegue, ressaltando que este grupo “está identificado com outro contexto da vida nacional e do Museu Paulista, o das celebrações do centenário da independência, em 1922”. “Como em um álbum de figurinhas em grande formato, as nove telas retratam personagens e episódios da crise política que resultou no desmembramento do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com a separação, seguida da formação do Império do Brasil.”

Martinez lembra que esse conjunto de telas têm papel importante também na configuração do próprio Museu Paulista. Foi pelo projeto de Taunay, afinal, que a instituição deixou de ser um museu de ciências naturais, como havia sido planejado, para se tornar um museu histórico.

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