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Apesar da pandemia, Inep atrasa 2ª prova de Revalida para médicos formados no exterior

Segunda fase do exame não tem data para ocorrer; mais de 15 mil se inscreveram na prova de dezembro e entidades de Direitos Humanos querem profissionais na linha de frente da covid-19

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Com a pandemia do coronavírus se espalhando nos Estados, recordes de mortos registrados diariamente e equipes médicas à beira de um apagão nas UTIs lotadas pelo País, um contingente de cerca de 15 mil médicos quer trabalhar e não consegue. São médicos com formação no exterior que esperam regularização profissional no Brasil, mas os processos de legalização do exercício profissional andam a passos lentos ou estão paralisados.

O Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo programa Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira), não tem prazo para a segunda fase do exame desses profissionais estrangeiros. E há filas de centenas de candidatos nas únicas duas universidades que também fazem a regularização. Na Universidade Estadual do Maranhão, há 641 médicos aguardando chamada para a regularização. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a fila, na quarta-feira, 31, era de 1.049 candidatos à espera de legalização.

Hospitais da Grande São Pauloestãocom alta ocupação de leitos em UTI eenfermaria Foto: Miguel Schincariol/AFP

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"A situação da pandemia em alguns estados é desesperadora com a falta de médicos", diz Camila Suemi, da Associação Compassiva, ONG integrante de um grupo de nove entidades sociais e de defesa dos direitos humanos que cobra o governo federal a realização da 2ª fase do exame. Ela argumenta que outras universidades que têm cursos de Medicina também poderiam auxiliar no processo. O programa do Inep que habilita médicos formados no exterior para trabalhar no País teve a 1ª fase em 6 de dezembro, com 16.452 médicos inscritos, dos quais compareceram cerca de 15 mil. Foi o primeiro exame depois de três anos. Camila Suemi informa ainda que a inscrição para o Revalida custa R$ 330, para a primeira fase, e R$ 3,3 mil na segunda fase. 

O resultado da 1ª prova não foi divulgado. Só os candidatos podem acessar os resultados no site do Inep na internet.  Pelas previsões do próprio Inep, o exame deveria beneficiar ao menos 13 capitais, dentre elas Porto Alegre, Salvador e São Paulo, cidades com forte concentração de casos do coronavírus, além de Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Recife, Rio Branco e Rio. Mas o processo está paralisado. O Inep alega, em ofício obtido pelas entidades que reclamam do atraso, que a própria pandemia prejudica o andamento da regularização. Diz que não há verbas e que há também limitações impostas pela política de distanciamento social para evitar aglomerações.

"Há um atraso crônico e preocupante no Revalida”, observa Camila Asano, da Conectas Direitos Humanos, outra das entidades que defendem a imediata realização da 2ª prova. Além da Compassiva e da Conectas, o movimento é integrado pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, Centro de Atendimento ao Migrante – CAM, Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante – CDHIC, Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH, Missão Paz e Visão Mundial.

A Conectas trabalha com defesa de pessoas em situação de migração e refúgio, entre elas médicos e pessoal de saúde com formação fora do Brasil. Camila Asano argumenta que são pessoas que querem trabalhar, mas não têm tido "nem o direito de fazer" o Revalida.

Segundo ela, a Lei do Revalida, o §4º do art. 2º da Lei 13.959, de 18 de dezembro de 2019, determina que o exame seja aplicado semestralmente. "Uma das nossas preocupações, independentemente de estarmos em pandemia ou não, é a de que a lei não está sendo cumprida", alerta. "Isso piora o quadro", diz, lembrando que um dos problemas nacionais brasileiros no setor médico é exatamente a distribuição desigual desses profissionais de saúde.

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Em ofício enviado ao Inep, as entidades reforçaram o pedido da 2ª etapa. "É urgente que a 2ª etapa do Revalida 2020 seja agilizada para que os médicos aprovados possam atuar o quanto antes e ajudar a prevenir tragédias maiores causadas pela covid-19 em nosso País", defende o documento. As organizações lembram que em edições anteriores do Revalida houve um período de cerca de um mês entre uma etapa e outra, como ocorreu em 2015. O exame não era feito desde 2017.

Para o defensor público da União João Paulo Dorini, que durante a primeira onda da covid-19 entrou com ação na Justiça Federal de São Paulo pedindo a contratação emergencial desses profissionais, "há falta de médicos nos hospitais e é necessária a contratação dos profissionais estrangeiros para a pandemia". Na ação, a Justiça negou a liminar. Mas até hoje o caso não tem sentença definitiva.

"É importante deixar claro que, na nossa ação, a gente pede que esses médicos possam ser contratados até que se faça a prova do Revalida. Ninguém está querendo abrir para todo mundo. Mas como o Inep não está fazendo a prova, e a gente precisa de médicos, vamos contratar esses profissionais temporariamente. Depois, quando houver a prova, se a pessoa for aprovada, se regulariza. Mas é preciso adiantar o processo", diz o defensor público.

Desempregada, médica cubana espera resultado do exame

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A clínica geral Liudmila Solís Peña, médica cubana que vive no Rio e já foi do programa Mais Médicos, em 2016, é uma das profissionais estrangeiras que passou na 1ª fase, realizada em dezembro, e aguarda a segunda prova. "Mas não há data marcada ainda." Casada com brasileiro, com uma filha, a candidata está desempregada à espera da oportunidade de trabalhar. "A gente quer trabalhar onde for útil", diz a médica. "Não é fácil. Eu já tentei de vendedora, garçonete, fazer bolos", lembra. 

Ela lembra que acompanha de longe a crise da covid-19, em casa, sem poder atuar na linha de frente do combate à doença nem na atenção básica. "É triste, porque a gente veio para trabalhar na medicina", argumenta. Ela conta ainda que para poder se inscrever em uma prova teve de pagar R$ 1,6 mil, na 1ª fase, e que agora terá de gastar mais R$ 3,3 mil para poder fazer a 2ª prova do Inep. "Agora é esperar para fazer a outra prova", afirma. Sobre a primeira taxa, Liudmila na verdade se referia a uma taxa  de R$ 1,6 mil paga a uma outra entidade que criou outra prova, chamada Mais Revalida, esclarece Camila Suemi.

 

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A médica cubana Anidys Carrandi Vergara já integrou o programa Mais Médicos por 67 meses (quase seis anos). Hoje, porém, não pode clinicar no País e está desempregada. Ela é casada com um brasileiro e vive em Itamonte (MG). Anidys relata que os filhos dormem em colchão no chão. "Está difícil pagar as contas".

"Sou conhecida na cidade, as pessoas até perguntam por que eu não posso trabalhar", diz a médica, que trocou Cuba pelo Brasil em busca de oportunidade para crescer na profissão. Formada há 24 anos, com experiência em terapia intensiva e especialização em saúde da família pela UFMG, ela diz que optou pelo Brasil. "A gente adotou o Brasil, queremos ficar no Brasil, trabalhar, mas não consegue", conta. "O Brasil é tão grande, tem tanto lugar onde os médicos da elite não têm interesse de trabalhar, onde faltam médicos. A gente quer trabalhar", pede Anidys.

Anidys Carrandi Vergara já integrou o programa Mais Médicos por 67 meses (quase seis anos), mas atualmente não pode mais clinicar no Brasil e está desempregada Foto: Agnaldo da Silva/Arquivo Pessoal

Para tentar ajudar a comunidade de emigrados, ela criou a ONG Doctors Reserve. Anidys lembra que o colega Roberto Perez Reyes, que também estava desempregado, morreu de covid nesta semana em Teófilo Otoni, também no interior de Minas. “Nós, cubanos, estamos muito tristes com o falecimento do nosso colega, que lutou pra conseguir trabalhar como médico, porém, nunca teve oportunidade por ter decidido não voltar a Cuba quando terminou o contrato”, afirma.

Ela conta ainda que há aproximadamente 1,2 mil cubanos sem emprego no Brasil. "É muito triste o que está acontecendo. A gente vendo a pandemia e sem poder ajudar", lamenta. Ela lembra ainda que para fazer o Revalida, os médicos estrangeiros têm de pagar taxas consideradas muito altas para desempregados.

Ofício do Inep já reconheceu atraso

Em ofício obtido pelas entidades de Direitos Humanos, o Inepreconhece que a programação do exame, feito desde 2011, não esteve compatível com as exigências legais que determinam a realização semestral da avaliação profissional. E credita o atraso à pandemia. "Há que se entender que o ocorrido deu-se pelo motivo da indefinição da operacionalização do Revalida, de responsabilidade do Inep, fato que, por consequência, culminou na realização da 1ª etapa apenas ao final do primeiro semestre de 2020. Não menos importante, há o fato de o ano de 2020 ter sido caracterizado como significativamente atípico, vista a ocorrência e o enfrentamento da pandemia do Coronavírus (Covid-19) pelo Brasil, com imposição de isolamento social e de protocolos de saúde pública."

O documento lista ainda outras provas que precisaram de adiamento. "No caso do Revalida, no contexto dos protocolos de saúde pública para o enfrentamento à pandemia da Covid-19, a pandemia atrasou os processos e a data de aplicação das etapas do Exame frente ao contexto geral e à necessidade de uma série de protocolos sanitários em relação à aglomeração de participantes e equipe de aplicação."

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E ressalta: "Não obstante toda a problemática oriunda da pandemia de covid-19, o Inep tem executado suas atividades para elaborar, aplicar as duas etapas do Exame finalizá-lo na maior celeridade possível, com a garantia de obediência dos protocolos de saúde pública necessários , tendo aplicado a primeira etapa do Revalida 2020 na data de 06 de dezembro de 2020, com os resultados previstos para 05 de março de 2021."

O documento pondera ainda que "face a todo o exposto, e em específico quanto à solicitação de 'publicação imediata do resultado final da 1ª etapa e do edital da 2ª etapa, sua realização já no próximo mês e a publicação do resultado final logo em seguida', informa-se não ser possível o atendimento da demanda." A reportagem procurou a assessoria de imprensa do Inep, mas não obteve retorno. 

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