TikTok e crianças: quais os limites das redes sociais na infância?

Das dancinhas aos influenciadores, a vida online começa cada vez mais cedo. Mas a supervisão dos pais é fundamental

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Por Kátia Arima e Carolina Cerqueira
Atualização:

Fascinada pelo TikTok, a estudante Bianca Lima Donisetti, de 8 anos, levava bronca da mãe, a administradora de empresas Gabriela de Lima, de 40 anos, quando insistia em mexer no celular na hora das refeições. “Ela adora esses vídeos de desafios, artistas e dancinhas do momento e passava cerca de 3 horas por dia vendo esse tipo de conteúdo. No fim de semana chegava a ficar 5 horas”, diz Gabriela. A conta do celular da menina é vinculada à da mãe, que monitora quais são os aplicativos usados e por quanto tempo.

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Recentemente, Gabriela resolveu cancelar a conta de Bianca no TikTok. “Conteúdos inapropriados para a idade, inclusive de cunho sexual, começaram a ser exibidos”, justifica a mãe. Bianca foi compreensiva: “Eu fiquei chateada, mas entendi.”

Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o TikTok foi a rede social mais usada pelo público entre 9 e 17 anos no Brasil em 2021. No círculo social de Gabriela, muitas crianças da idade de sua filha acompanham os conteúdos do app – alguns deles têm seus próprios perfis. “É um hábito comum nessa faixa etária”, observa a mãe. A maioria das plataformas exige que os usuários tenham 13 anos ou mais, mas não é o que acontece na prática, já que é fácil burlar essa restrição.

No Brasil, o uso de redes sociais pelo público infantil é uma das atividades online que mais cresceram nos últimos anos, segundo a TIC Kids Online: em 2021, 78% dos usuários de internet com idades de 9 a 17 anos acessaram alguma rede social, um aumento de 10 pontos porcentuais em relação a 2019 (68%). Outra pesquisa, conduzida no Reino Unido em 2021 pela agência reguladora de comunicações, a Ofcom, revelou que 33% das crianças entre 5 e 7 anos têm seu próprio perfil nas redes sociais, 60% na faixa entre 8 e 11 anos, 89% entre 12 e 15 anos e 94% entre 16 e 17 anos.

Apesar do sucesso com esse público, as mídias sociais criam uma série de riscos às crianças e aos adolescentes quando não há supervisão adequada de um adulto. E isso pode incluir prejuízos de desenvolvimento físico, mas, principalmente psicológico e social, afirma Nara Helena Lopes Pereira da Silva, psicóloga clínica e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).

“Esses impactos já foram estudados e constatados pela neurociência. Elas afetam a saúde mental, com aumento de sintomas de ansiedade e comportamento de vício, já que as redes sociais são um universo manipulativo dos algoritmos, direcionados pela intenção de engajamento e consumo contínuo. Aprisionado em desejos induzidos, artificiais, o público infantil vivencia menos os seus próprios recursos e potencialidades.”

Esses impactos já foram estudados e constatados pela neurociência. Elas afetam a saúde mental, com aumento de sintomas de ansiedade e comportamento de vício”

Nara Helena, psicóloga clínica

Com a atenção voltada ao conteúdo das redes sociais, falta às crianças e adolescentes o tédio, fundamental para a percepção de si e autorreflexão, e a falta de “silêncio interno” para perceber suas necessidades, desejos e incômodos, explica a psicóloga. “Isso pode repercutir, possivelmente, em sintomas futuros de vazio, tristeza, falta de sentido para a vida, entre outros”, alerta.

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Gabriela decidiu apagar o perfil do TikTok da filha Bianca, de 8 anos. Foto: Alex Silva/Estadão

Além disso, a pesquisadora explica que as redes sociais criam bolhas que reúnem pessoas com características afins. “Isso dificulta os processos importantes de confronto com o diferente e intensifica intolerâncias”, diz Nara.

Redes sociais são “uma loja cheia de doces”

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) aponta que as redes sociais, com seus recursos de “curtidas” e comentários que servem de gratificação para o cérebro, ativam a liberação do neurotransmissor dopamina, que traz satisfação – mas também propicia um ciclo vicioso de ansiedade e depressão.

O mesmo mecanismo de recompensa é ativado ao assistir a vídeos curtos, um hábito que pode estar associado à maior dificuldade de concentração e foco em tarefas cotidianas – o que é especialmente danoso quando estamos falando de crianças e adolescentes em formação, como apontou o pesquisador da Universidade de Oxford, na Inglaterra, James Williams, focado no estudo de questões filosóficas e éticas relacionadas à influência tecnológica.

Segundo ele, o TikTok é para as crianças como uma “loja cheia de doces”, que oferecem prazeres imediatos. “Uma criança assídua das redes sociais vai sofrer alterações de comportamento porque elas são instantâneas. Na vida real, é preciso saber lidar com a espera, com o ‘não’ e com a frustração”, diz a psicóloga Tatiana Amaral.

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A preocupação constante com o reconhecimento e aprovação por meio dos “likes” também tem um impacto nas crianças e adolescentes, especialmente naqueles que se comportam como influenciadores digitais, que visam a popularidade. “Ficam expostos a críticas agressivas, comentários maldosos e preconceituosos que podem afetar a autoestima de forma profunda”, diz Tatiana.

Com perfil nas redes sociais, mas sem acesso aos comentários

Cidih Eldo, de 35 anos, sabe bem disso e faz de tudo para que a filha não tenha acesso a nenhum comentário nas redes sociais. Ela é mãe da miss, cantora e apresentadora mirim Sophia Eldo, de 6 anos, que tem 1 milhão de seguidores no Instagram. “Eu tenho medo porque as pessoas não pensam no que falam, usam discurso de ódio. Tem gente que critica Sophia, diz que ela não canta nada, que fulano é melhor. Eu sei que ela não iria entender se lesse, que faria mal a ela, então eu tomo todo o cuidado”, conta Cidih.

Sophia Eldo, de 6 anos, influenciadora mirim: a mãe não deixa que ela veja os comentários nas redes. Foto: Arquivo Pessoal

A exploração comercial também é uma preocupação quando as crianças estão consumindo o conteúdo sedutor – e vendedor – de muitos influenciadores digitais, infantis ou não. “Pessoas de 0 a 12 anos incompletos não identificam a publicidade como tal e, ainda que a reconheçam, não entendem o seu caráter persuasivo. Por serem mais vulneráveis, a legislação classifica a exploração da vulnerabilidade e experiência da criança como hipóteses de publicidade abusiva e, portanto, ilegal”, diz Maria Melo, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.

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A pesquisa TIC Kids Online 2021 revelou que 61% do público entre 11 e 17 anos afirmou que tiveram contato com conteúdo publicitário por meio de pessoas abrindo a embalagem de um produto e 53% relataram que o conteúdo envolvia brincadeiras ou desafios.

“O poder dos influenciadores pode afetar o público infantil negativamente ao explorar as suas vulnerabilidades, incitando-os a desejos não naturais de consumo ou ações não apropriadas para suas idades. As crianças precisam ser respeitadas, inclusive na internet, para que possam se desenvolver sem qualquer tipo de pressão e exploração, inclusive comerciais”, explica Maria. Segundo ela, diante desse cenário, os pais não devem se sobrecarregar de culpa, mas estimular reflexões sobre a responsabilidade compartilhada entre famílias, empresas e governo.

Plataformas podem ser tóxicas para a autoestima

As redes sociais suscitam comparações desleais, já que o que se posta é um recorte da vida, geralmente o recorte mais positivo. Isso pode causar sensação de inferioridade, influenciando na forma como as crianças e jovens se enxergam. “As redes podem ser um verdadeiro campo minado para a formação da autoimagem e identidade. A maioria quer ser admirada e amada, o que faz com que adolescentes que não alcançam esse status avaliem sua existência de modo depreciativo”, diz a psicóloga Vânia Beatriz Gomes.

Relatórios internos do próprio Instagram, revelados em 2021 pelo jornal norte-americano Wall Street Journal, reconheceram que a plataforma era tóxica para a autoestima de meninas. O Facebook – empresa que hoje se chama Meta – estava desenvolvendo o Instagram para menores de 13 anos, mas paralisou o projeto no ano passado, frente a protestos, anunciando que antes de prosseguir irá ouvir pais e especialistas.

A educadora parental Fernanda Greghi Shimada recomenda aos pais bastante diálogo com os filhos e muita “ginástica” dos adultos para oferecer uma vida atrativa offline para as crianças e adolescentes, em um movimento oposto ao das mídias sociais, em busca do equilíbrio.

Por reconhecer os perigos da vida digital, Fernanda não deu celular ou tablet aos filhos Vinícius e Felipe, de 4 anos, e Júlia, de 8 anos. “Vou adiar o quanto puder. Enquanto isso, vou criando uma musculatura para que eles estejam mais preparados para lidar com tudo isso.” Ao mesmo tempo, ela não recomenda que os pais proíbam os filhos de fazer as atividades. “Isso só acirra uma curiosidade enorme e, de um jeito ou de outro, eles vão dar um jeito de acessar o que querem”, explica.

Fernanda permite aos filhos assistir ao YouTube, na TV da sala de casa, mas não permite que acessem sozinhos o TikTok. Júlia gosta de influenciadores digitais como Luluca, Maria Clara e JP, Brancoala e Flávia Calina, mas a mãe fica de olho no conteúdo. “Eu sempre faço comentários de contraponto sobre aquilo que é mostrado na tela. Explico, por exemplo, que a vida do influenciador não é perfeita. Que o vídeo mostra a menina acordando maquiada, mas aquilo não é a vida real.”

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Fernanda também busca trazer outros referenciais para a vida da filha, contando histórias de pessoas admiráveis. “Já contei a história da cientista Marie Curie e dos avós e familiares, para que ela perceba outros valores que vão além da fama e do consumo”, exemplifica. E para evitar que o conteúdo digital os torne dispersos, ela costuma propor aos filhos que observem detalhes na natureza e se atentem aos sabores nas refeições, aos instrumentos das músicas que ouvem. “É como um antídoto para uma vida frenética.”

Pais devem ficar atentos a possíveis predadores virtuais

Além de evitar prejuízos à saúde mental e física das crianças no ambiente digital, é preciso proteger os mais novos da violência sexual, crime mais comum na internet contra menores, no contexto dos direitos humanos, afirma o psicólogo Rodrigo Nejm, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretor de educação da ONG SaferNet.

“O criminoso entra em contato com a criança por aplicativo de mensagem ou pelo chat para conseguir produzir conteúdo sexual dela e usa técnicas bem cruéis”, ilustra. Outra prática comum é a “sextorsão”, quando o criminoso ameaça vazar um conteúdo íntimo da vítima, afirma Nejm.

Sofia Cedraz, de 8 anos, com as primas e os tios, que controlam o que ela consome nas redes. Foto: Arquivo Pessoal

Vanusia Cedraz, de 56 anos, se preocupa com o que a sobrinha Sofia, de 8 anos, consome no TikTok. “Ela não tem celular, mas usa o das outras pessoas da família. Só assiste com a gente do lado, eu fico prestando atenção e ouvindo. Se algo me chama atenção eu questiono. Se for algo errado, eu converso com ela”, conta. “Como eu não entendo essas redes, peço para a minha filha mexer e ficar mais em cima de Sofia.”

O psicólogo Rodrigo Nejm alerta que crianças e adolescentes também podem ter condutas erradas por acreditar que a internet é uma “terra sem lei’ e se sentem confiantes para adotar condutas erradas. Na maioria das vezes, a agressão esconde uma questão de saúde mental. “Há uma pressão social, uma comparação estimulada pelas redes. O adolescente tem a necessidade de ser popular e aparecer e ele pode acabar recorrendo a atitudes erradas para chegar a esse fim”, diz.

Nejm recomenda que os responsáveis expliquem a crianças e adolescentes que essas atitudes podem ser enquadradas como ato infracional e o adolescente e a família podem ser responsabilizado pelos atos, respondendo na Justiça através da Vara da Infância e Juventude. Outra medida importante é lembrá-los de que a internet funciona como um registro e seus atos podem ter consequências futuras, como quando estiverem em busca de emprego, por exemplo.

Ao notar o crescimento de casos de demandas judiciais envolvendo crianças e adolescentes no mundo digital, a advogada Alessandra Borelli resolveu escrever o livro Crianças e Adolescentes no Mundo Digital – Orientações Essenciais para o Uso Seguro e Consciente das Novas Tecnologias, da Editora Autêntica, com lançamento previsto para outubro. “Percebi que muitos desses casos poderiam ter sido evitados com informações. Muitas vezes os filhos dizem que não sabiam que algo estava errado e os pais dizem que não conheciam o ambiente digital”, diz.

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Alessandra não deixa de alertar para os perigos das mídias sociais, mas o seu livro traz dicas práticas para que famílias e escolas consigam não só fazer o monitoramento das crianças e adolescentes, mas também educar para transitar no mundo digital com menos riscos.

Entre suas diversas recomendações, a advogada reforça a importância da tríade da civilidade: saúde, segurança e valores. Ao longo da infância e adolescência, é preciso que os pais ensinem os filhos a cuidar da saúde, como alimentar-se bem, dormir bem, cuidar de sua própria segurança e respeitar o próximo. “Nada substitui o diálogo entre pais e filhos. Esses ensinamentos terão reflexo tanto na vida online como offline”, orienta Alessandra.

Como pais podem mediar o uso que os filhos fazem das redes sociais?

Confira as dicas dos especialistas:

Limitar o uso

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que, até os 2 anos, a criança não tenha nenhum contato com telas. Entre 2 e 5 anos, a exposição deve ser por, no máximo, 1h por dia, dividida em pequenos momentos. O tempo total pode subir para até 2h entre 6 e 10 anos. De 11 a 18 anos, ficar no máximo 3h, sempre com supervisão. Para todas as idades, nunca usar telas nas refeições e desligar pelo menos uma hora antes de dormir. Defina o lugar onde o acesso está autorizado.

Monitorar o uso

Até 12 ou 13 anos, faça um controle mais rigoroso. O ideal é que os pais compartilhem a conta com os filhos ou que espelhem o perfil no celular. Depois dessa idade, as regras podem ser flexibilizadas. Use ferramentas de controle parental da plataforma, do celular ou apps como FamiSafe e Qustodio. As mesmas regras do presencial valem para o mundo virtual, ou seja, se você não deixa seu filho sair sozinho na rua, também não deve deixá-lo sozinho na internet, que é também um espaço público.

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Conhecer o que o filho consome

Mesmo que os pais não usem os aplicativos, é preciso que entendam como eles funcionam. Quanto mais souberem sobre os mecanismos e os conteúdos que circulam por lá, melhor. Para isso, é importante saber quais jogos, aplicativos e influenciadores os filhos acessam.

Dar o exemplo

Se o filho não pode usar o celular na hora da refeição, o pai e a mãe também não podem. O ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’ não vai valer. Eles precisam ver sentido em obedecer. Uma ideia é definir um dia da semana (ou do mês) para que a família não use as redes sociais.

Observar o comportamento

Se houver mudança comportamental, é preciso ligar o sinal de alerta. Está mais agitado? Com dificuldade para dormir? Mais agressivo? Com dificuldade de se relacionar fora das redes? Esses são sinais amarelos de que algo não está bem e o uso das redes pode estar relacionado a isso. Os pais precisam ir atrás para compreender, podendo, inclusive, solicitar a ajuda de profissionais, como psicólogos e psicopedagogos.

Tomar cuidado com o que é compartilhado nas redes

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Além de não compartilhar endereço e telefone, é importante não dar pistas da rotina da criança - como, por exemplo, fotos com o uniforme escolar.

Deixar o filho saber que pode contar com os pais

É importante que os pais alertem seus filhos de que podem contar com eles em qualquer ocasião, sem sentir medo.

Demonizar não adianta

Proibir e fazer terrorismo sobre as mídias sociais não protege, já que pode resultar em ações fora do alcance dos responsáveis.

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