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‘Não precisamos construir mais, precisamos viver de outra maneira’, defende professor da Sorbonne

Pesquisador é um dos idealizadores da cidade de 15 minutos, tema pelo qual fez consultoria para projetos urbanos de Paris

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Por Priscila Mengue
Atualização:

O pesquisador franco-colombiano Carlos Moreno é uma das principais referências mundiais na discussão de cidades inteligentes, desenvolvimento sustentável e crono-urbanismo. Foi um dos principais idealizadores da cidade de 15 minutos, tema pelo qual fez consultoria para os atuais projetos urbanos de Paris.

Além disso, é professor da Universidade de Sorbonne, onde também é diretor-científico de uma cátedra de inovação, empreendedorismo e território. Por videochamada, falou com o Estadão sobre desenvolvimento urbano sustentável, papel dos setores público e privado na mudança das cidades e contribuição da tecnologia, entre outros temas.

Carlos Moreno é professor da Universidade de Sorbonne e consultor da prefeita de Paris Foto: Chaire ETI

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Como o urbanismo pode tornar a vida na cidade mais sustentável?

Precisamos mudar a nossa visão sobre a cidade para dar muito mais importância para a qualidade de vida dos que vivem nela, baseada no acesso aos serviços fundamentais, que precisam ser encontrados em uma melhor distribuição do espaço urbano para que se tenha acesso a esse serviços: moradia, trabalho, abastecimento, saúde, educação, cultura e o ócio. Essas funções sociais urbanas estão no coração da qualidade de vida. Necessitamos hoje poder oferecê-las com forte descentralização para que seu acesso não nos obrigue, como hoje, a percorrer grandes distâncias, o que nos leva a congestionar a cidade, a ter muita poluição e pôr em perigo nossa saúde. Ao mesmo tempo, essa distribuição de serviços na cidade é ecológica, porque nos preserva quando sabemos que o nosso inimigo hoje em dia são as mudanças climáticas. E, terceiro, em um mundo ameaçado pela pandemia, isso nos permite ter uma cidade com menos pressão e mais acessível, o que significa uma cidade muito mais sã. Temos de mudar o paradigma, mas não (para) uma cidade que melhora pela tecnologia ou por intervenções em grandes obras, mas uma cidade que oferece uma qualidade de vida porque há muitos serviços para os cidadãos em muitos lugares da cidade. Distribuição, descentralização, com uma visão de ecologia, humanista e de economia circular.

A pandemia mudou a forma que se pensa o urbanismo e vai ajudar a pensar cidades mais sustentáveis?

Nos mostra que o mundo urbano é muito frágil, é imperfeito e incompleto. Esses três elementos maiores fazem com que tenhamos de mudar de estilo de vida. Diante das mudanças climáticas, necessitamos de neutralidade de carbono até 2050 e, desde hoje, diminuir nossas emissões de C02 por ao menos 45%. Diante da pandemia, precisamos reduzir o contato massivo, mas temos de manter a atividade econômica e social. Não podemos fazer uma ecologia somente de preservação do meio ambiente, sem que nos interessamos por uma economia que funcione com uma redistribuição de renda para tirar as pessoas da pobreza. E, ao mesmo tempo, a atividade econômica precisa ter um impacto social para que socialmente tenhamos mais democracia, menos racismo, menos intolerância, menos exclusão de pessoas por sua cor, seu gênero, suas orientações sexuais ou sua maneira de pensar. Então, a pandemia oferece hoje uma obrigação de precisar viver de outra forma. E o conceito dos 15 minutos na cidade, de proximidade, oferece uma alternativa que é credível para o mundo urbano. Não precisamos hoje em dia fazer novas revoluções urbanas, precisamos de uma regeneração urbana. Não precisamos construir mais, precisamos viver de outra maneira.

O conceito da cidade de 15 minutos é replicável para o Hemisfério Sul, com realidades bastante distintas das grandes capitais europeias?

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As cidades de 15 minutos são uma reflexão de fundo sobre um novo paradigma urbano, não é uma receita mágica. O mundo urbano hoje em dia corresponde a algo, que é um pouco esquecido, que é a sua complexidade. Cidades da América Latina, como São Paulo, Rio, Cidade do México, Buenos Aires, são complexas porque pertencem a uma territorialidade que foi construída, em muitas ocasiões, de maneira muito caótica, de uma maneira informal. A construção da cidade nunca foi feita com uma reflexão sobre a qualidade de vida urbana. Se construiu com critérios de gente que vinha do campo à cidade e uma organização especial muito segmentada: o centro de negócios, o centro histórico, a cidade dos ricos, geralmente no norte, as cidades de classe média e todos os cordões de pobreza. O que observamos na América Latina é que precisamos desenvolver novos paradigmas urbanos. Necessitamos sair de cidades planejados a curto prazo, com prefeitos que duram pouco tempo e muitas vezes fazem grandes obras de infraestrutura porque pensam que é a transformação urbana, o que não é certo. E geram grandes macroprojetos, que são fontes de corrupção, como foi no Brasil, com a Odebrecht, mas que ressoam em todo o continente latino-americano. Então, a cidade de proximidade, dos 15 minutos, obedece a um conceito de paradigma urbano distinto, que é considerar um território e sua descentralização, que significa uma vontade política para não investir dinheiro em grandes trabalhos faraônicos, fontes de corrupção, mas em estudar o território e como foi construído, compreender o que falta, para oferecer serviços de muito mais qualidade em atenção a cada um dos habitantes. Essa cidade dos 15 minutos é possível com nova maneira dos governos locais de se comprometer com as mudanças urbanas, um movimento de empoderamento cidadão e um diálogo com os setores econômicos para que compreendam a importância de sair da segmentação da cidade. Se descentralizamos a cidade, podemos relocalizar a economia como muito mais fluidez, em um século em que as tecnologias digitais nos permitem descentralizar sem perder produtividade e a capacidade de desenvolvimento econômico. De que serve produzir mais para conseguir mais, se o dinheiro que gasto de consumo me tira o tempo de vida para mim, minha família, meus vizinhos e o bem do planeta? Então, é um desafio histórico para que, em tempo de pandemia, paremos a máquina infernal que nos está conduzindo ao abismo, para tratar de levar a uma vida que consiga ecologia diante das mudanças climáticas e crie canais de economia sustentável com uma riqueza melhor compartilhada e um desenvolvimento social.

Qual é o papel do setor privado para garantir um urbanismo mais sustentável?

O desenvolvimento sustentável não é somente a ecologia ambientalista. O Muhammad Yunus, prêmio Nobel de Economia em 2006, escreveu um livro que se chama "O Triplo Zero", zero carbono, zero pobreza e zero exclusão. Quando o professor Yunus fala de zero carbono, estamos falando de criar valor ecológico diante das mudanças climáticas. Quando diz zero pobreza, estamos falando de criar valor econômico diante a uma pobreza divide socialmente. Quando fala de zero exclusão, estamos falando do impacto social da economia. Então, desenvolver uma cidade sustentável é desenvolver uma cidade que converge em criação de valor ecológico, econômico e social. Desenvolver economicamente é criar com o setor privado, e não podemos ignorá-lo e nem enfrentá-lo como inimigos. Devemos criar um diálogo com o setor privado para mudar a maneira de agendar a economia dentro do mundo urbano. Temos de aceitar o setor econômico em particular, porque vivemos no século das cidade. O setor econômico precisa ter um compromisso com o desenvolvimento urbano, porque é onde vive a maioria da população e onde se desenvolve a riqueza e a pobreza, é onde está a exclusão e as oportunidades, é onde se gera poluição e se reforça as mudanças climáticas ou é onde se gera possibilidades de enfrentá-la e criar uma neutralidade de carbono. Então, o território econômico é fundamental nesta nova viagem para mudar de paradigma. Mas a resposta seria incompleta se não destacar igualmente que precisamos de um poder público forte, que tenha um papel de regulação para impedir que o setor privado ande como um cão em sua casa, que é o que tem acontecido até agora. O problema da América Latina é que os governos locais e os nacionais não têm sido sempre os fiadores do bem comum.

Como começar a fazer essas mudanças o que o senhor propõe?

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Precisamos que a cidade intervenha economicamente como elemento regulatório. Em Paris estamos fazendo isso. A cidade tem voz e capacidade de decisão sobre os metros quadrados que utiliza. Comprar metros quadrados pela cidade para colocá-los em alojamento ou para colocá-los à venda, mas sem especulação imobiliária, separando o preço do solo do preço do que será construído em cima. O que se vende, o que se aluga, é o que está construído. Igualmente em Paris se compra metros quadrados para alugar para para se instalarem comércios de baixa rentabilidade, porque com uma livraria não se ganha mais muito dinheiro, com uma galeria de arte não se ganha muito dinheiro. Então, oferecer elementos de insumo e de consumo que sejam de qualidade de vida e não simplesmente comércios para vender brinquedos de plástico que vêm da China ou quadrinhos que vêm com uma ideologia da Marvel e que não nos trazem uma capacidade de criatividade e de enraizamento da nossa cultura popular e nossa cultura de bairro.

E como incluir a natureza a essas mudanças nas cidades?

Vivemos em cidades cimentadas. Vivemos em cidades petrolizadas, porque construímos grandes avenidas para carros particulares e individuais. E o terceiro elemento químico é o plástico, porque nós plastificamos a cidade: até um tomate que compramos em um supermercado é envolto em plástico. Estamos comprando uma maneira de viver que nos está separando da natureza e da biodiversidade. Muitas vezes vemos a natureza na América Latina, os rios, as árvores, como algo externo a nós, como um elemento de ornamentação, ou seja, para ser bonito. A natureza não é um ornamento. Nós somos a natureza, pertencemos à natureza. A América Latina nas épocas pré-colombianas, nas épocas indígenas, nas grandes civilizações ameríndias, o homem e a natureza, a biodiversidade, eram uma só continuidade, então essa circularidade da vida foi perdida, porque temos transmitido de geração em geração, depois da cidade moderna, uma cidade linear.

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Como a tecnologia pode ajudar a fazer essas mudanças mais rapidamente e com menor custo?

Ela é um elemento chave, porque hoje em dia temos acesso a uma grande variedade de soluções tecnológicas que poderiam levar ao caminho de uma cidade sustentável, ecológica, econômica e social. O problema é que se tem feito o contrário: hoje em dia tem sido a tecnologia que tem decidido a forma da cidade para satisfazer interesses econômicos. Se, ao contrário, tivermos uma visão de ecologia humanista e de economia circular, baseada nessa ideia de proximidade, de descentralização, de bens comuns e de satisfação do interesse geral, estamos mudando a forma da cidade, estamos propondo outra maneira de viver. E, nesse caso, a tecnologia é um aliado maior. Se queremos, por exemplo, desenvolver uma cidade de 15 minutos, o que chamamos de densidade orgânica é um elemento muito importante com a tecnologia. E o que é densidade orgânica? Em vez de se fazer grandes complexos, estamos trabalhando em pequenas unidades nas quais estamos privilegiando os materiais que entram na economia circular, ou seja, que entrem dentro de uma construção que tem um lugar de vida em que monta e se desmonta igualmente. E essa economia circular são os materiais nobres, é a madeira, a terra, o bambu, é mesclar vegetação. Precisamos mudar o modo de vida. As tecnologias nos permitem hoje em dia captar o nível de intensidade de usuários em um momento para um serviço. Com essa tecnologia, podemos saber que não estamos otimizados e promover esse mesmo serviço a um preço muito mais baixo. É melhor ter gente que pague menos para que lhe cubra custos básicos do que pessoas que não podem pagar a um custo elevado. Então, é o que chamo de serviços tecnológicos de motorização urbana. São novos modelos econômicos, e não modelos de serviço ou de uso, que se faz no sentido de intensificar a vida social de proximidade.

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