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Quais polícias usam câmeras nos uniformes? Modelo vira briga política e tem até intervenção do STF

Número de equipamentos em funcionamento quadruplicou em dois anos no País. Avanço tem suscitado críticas, como as feitas pelo governador Tarcísio de Freitas. Especialistas defendem eficácia

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Por José Maria Tomazela

O total de câmeras corporais em uso contínuo pelas polícias militares de todo o País mais do que quadruplicou. Há dois anos, eram 5.995 câmeras em operação; hoje são ao menos 27.905, segundo as secretarias estaduais de Segurança Pública. Após o boom da tecnologia, os Estados agora buscam meios de financiar a expansão da política, ao mesmo tempo em que veem crescer o tom crítico ao modelo por parte de agentes e políticos.

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Chamou atenção, no dia 2 de janeiro, a fala do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sobre o assunto. “Qual a efetividade das câmeras corporais na segurança do cidadão? Nenhuma”, disse em entrevista à TV Globo.

O exemplo de São Paulo, que conseguiu reduzir significativamente as mortes cometidas por policiais após a expansão da tecnologia, era largamente usado como incentivo à adoção dos equipamentos em outras localidades. Estudos têm ressaltado a eficácia das câmeras. As análises ressaltaram o efeito positivo no controle das mortes cometidas pelos agentes, assim como aumento da produtividade policial.

Pesquisa do Centro de Ciência Aplicada em Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) apontou que as câmeras corporais reduziram em 57% o número de mortes decorrentes de ações policiais em relação a unidades policiais onde, até aquele momento, não havia a implantação da tecnologia. Ainda conforme o material, o Programa Olho Vivo provocou aumento de 24% do total de apreensões de armas e de 102% dos registros de casos de violência doméstica.

As câmeras são acopladas aos uniformes dos policiais e registram operações, abordagens e outras atividades policiais. Em 11 Estados brasileiros, a Polícia Militar já usa câmeras corporais em suas operações diárias. Desses, oito já incorporaram a prática em suas rotinas, segundo levantamento do Estadão. Outras três unidades federativas têm equipamentos em testes.

Em fevereiro de 2022, apenas policiais de São Paulo, Santa Catarina e Rondônia tinham câmeras nos uniformes. Agora, também as PMs do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Pará e Rio Grande do Norte adotam os equipamentos em escalas variadas. Os testes com body cams, como são conhecidos internacionalmente os equipamentos, são realizados atualmente nos estados da Bahia, Roraima e Pernambuco.

Pará é um dos Estados que têm câmeras corporais em uso na polícia Foto: Alex Ribeiro/Agência Pará - 4/5/2023

Pioneiros, SC e SP veem tecnologia estacionar

Com o maior contingente de polícia estadual no País, o Estado de São Paulo saiu de 2.500 câmeras em janeiro de 2022 para 10.125 atualmente, número que ficou congelado ao longo de 2023 sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas.

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Conforme a Secretaria de Segurança Pública (SSP), os equipamentos estão disponíveis em todos os batalhões da capital e da Grande São Paulo, e chegou também aos batalhões do interior, incluindo os de Santos, Guarujá, Campinas, Sumaré e São José dos Campos. Cerca de 52% dos policiais do Estado já têm acesso aos dispositivos.

São Paulo conta com pouco mais de 10 mil câmeras em operação. Programa teve estagnação no ano passado Foto: Taba Benedicto/Estadão

Na semana passada, em resposta ao Estadão, a Secretaria de Segurança Pública disse que o programa Olho Vivo, que inclui as câmeras corporais, está mantido pelo governo. “Os contratos de manutenção dos equipamentos estão ativos e possuem orçamento previsto para 2024″, disse a pasta.

Apesar disso, a gestão Tarcísio já deu indicativos de que o programa não deve ser ampliado. O secretário de Segurança, Guilherme Derrite, chegou a afirmar no início do ano passado que o projeto poderia ser revisto, mas depois ressaltou que a iniciativa não seria encerrada, mas usada também com outras finalidades. “Ela é uma ferramenta tecnológica que veio para ficar. Quando disse que ia revê-lo, isso foi interpretado como se fosse acabar com o programa. Não é o que acontecerá. Vamos ampliá-lo, trazendo novas funcionalidades às câmeras”, disse ao Estadão em janeiro de 2023.

A mudança no programa tem defensores na Assembleia Legislativa do Estado. Em agosto, o deputado estadual Rafa Zimbaldi (Cidadania-SP) pleiteou a retirada do equipamento dos uniformes. “Desde a sua implantação, ainda na gestão anterior (do então governador João Doria, PSDB), as câmeras não são unanimidade e geram controvérsia quanto a resultados efetivos. Não podemos ter um BBB PM em São Paulo”, disse na oportunidade, acrescentando que os equipamentos “são utilizados como ferramenta punitiva aos agentes de Segurança Pública”.

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No contexto da repercussão sobre as mortes cometidas por policiais durante a Operação Escudo, no Guarujá, e pedidos de investigação do caso, o deputado estadual Gil Diniz (PL), disse em agosto que estava “na hora de debatermos, em São Paulo, a retirada das câmeras no peito dos nossos policiais! A bandidagem não pode ter essa vantagem!”. Em dezembro, o Ministério Público denunciou, com auxílio das câmeras, dois policiais por supostamente terem forjado confronto na operação.

Estado pioneiro na utilização das câmeras policiais, Santa Catarina não ampliou o número de equipamentos nos dois últimos anos. O uso foi iniciado em 2018 e, a partir de 22 de julho de 2019, foram distribuídas 2.245 câmeras para todas as unidades.

A PM informou que em todos os turnos operacionais pelo menos um policial de cada guarnição está equipado com o dispositivo. O acesso às imagens é disponibilizado à Justiça. “Existe uma grande aceitação da corporação através de trabalho de conscientização do seu uso”, disse a PM, em nota.

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Para Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, a implantação das câmeras corporais nas polícias entraram em um debate nocivo com os governadores da linha bolsonarista, trazendo a público que elas serviriam para controlar ou limitar o trabalho do policial.

Ela diz que é importante entender que se trata de um processo de profissionalização das polícias. “As câmeras servem para o comandante ter uma visão melhor da situação, como o policial trabalha, e até no caso de um policial baleado, ele vai saber se é o caso de mandar um socorro terrestre ou aéreo. É uma ferramenta de treinamento para o policial e, na revisão das imagens, gera consequências para o policial, que pode ser um elogio quando uma boa ação é vista pelo superior, um retreinamento ou uma punição.”

O coronel reformado da PM de São Paulo e consultor em segurança José Vicente da Silva Filho observou que no Estado, nos anos 2021 e 2022, em que houve redução na letalidade policial e na morte de policiais, também houve incremento gradual de provas da ação policial.

“Isso acaba elevando o padrão da polícia, os resultados aparecem e os ganhos políticos escalam. A menos que os governadores adotem uma política de não usar as câmeras para que os policiais possam usar e abusar da força como meio de intimidar os criminosos. É bom lembrar que alguns governadores gostam de exibir o machismo em relação aos criminosos porque isso angaria algum tipo de simpatia popular como alguém que está enfrentando os criminosos. Mas isso é uma politicagem barata.”

Pressionado pelo STF, Rio tem o maior número de equipamentos

O maior avanço recente no uso de câmeras aconteceu no Rio de Janeiro que, há dois anos, não tinha dispositivos em operação. Atualmente, segundo a Secretaria de Estado de Polícia Militar, foram instaladas 11.249 câmeras.

Segundo a Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio, foram instaladas 11.249 câmeras Foto: Philippe Lima/Governo-RJ

Outros 1.751 equipamentos foram contratados e devem ter o uso autorizado nas próximas semanas. Há ainda as 200 câmeras da parceira federal, equipando o policiamento rodoviário.

A medida ocorre após decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que manteve a determinação de instalação das câmeras, mesmo para equipes da polícia especializada como Bope e Core. O Estado do Rio tinha chegado a argumentar em juízo que os equipamentos poderia atrapalhar as ações de inteligência e poderiam colocar em risco a vida de agentes de segurança e moradores das comunidades.

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A PM de Minas Gerais, que há dois anos não usava câmeras, mas já testava os equipamentos, tem 1.040 dispositivos em uso nos fardamentos desde dezembro de 2022. Mais de 4 mil policiais usam a tecnologia em turnos alternados. As imagens são armazenadas pelo sistema de inteligência e, segundo o governo estadual, podem ser usadas para subsidiar processos criminais.

No Paraná, o contrato para a locação de 300 câmeras corporais foi assinado em novembro de 2023. A empresa já iniciou a entrega dos primeiros lotes do equipamento.

No Pará, as primeiras 960 câmeras já foram distribuídas aos agentes e estão em uso, segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup). Mais 3 mil estão em fase final de licitação. O Rio Grande do Norte tem 15 câmeras nos uniformes dos agentes das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam). O Estado planeja estender o uso às demais forças.

Custo e especificações técnicas são entraves

Outros 14 Estados têm iniciativas em andamento para o uso das câmeras. No Amazonas, a Secretaria de Segurança Pública pretende usar, mas aguarda a definição de parâmetros pelo governo federal. Também têm planos para o uso, mas aguardam definição de modelos e preços os Estados de Sergipe e Piauí.

Alguns Estados estão mais adiantados na busca pela tecnologia. O governo do Espírito Santo informou que as câmeras estão em processo de compra e devem ser utilizadas a partir deste ano. A instalação dos equipamentos será gradual.

Em Tocantins, a Polícia Militar e a pasta da Segurança Pública realizam estudos de viabilidade para adquirir os equipamentos, mas aguardam os estudos do Ministério da Justiça para realizar o planejamento orçamentário “com base nos parâmetros nacionalmente aprovados”.

O Estado de Mato Grosso do Sul também aguarda alinhamento com o Ministério para aderir à ata nacional de registro de preços, visando à compra de equipamentos com valores menores.

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Em Alagoas, segundo a SSP, a Polícia Militar realiza estudos técnicos para adotar as câmeras. “Uma comissão foi criada para verificar custos orçamentários e logísticos para a implantação do equipamento no serviço ordinário”, disse. Segundo a pasta, a comissão visitou outros estados que já utilizam a tecnologia.

Entre os obstáculos a serem superados,o coronel reformado José Vicente da Silva Filho ressalta a escolha do modelo de câmera e do armazenamento do conteúdo.

“O modelo adotado por São Paulo veio progressivamente acrescendo melhorias que outros Estados já podem adotar. Entre elas, a conveniência de que a câmera grave continuamente durante 12 horas. Também se conseguiu que a câmera grave em alta definição e com GPS a partir do momento em que o policial é acionado para entrar em ação efetiva”, disse.

O sistema de armazenamento também demanda um procedimento que permita depois localizar qualquer evento da marcação.

“A nuvem de armazenamento exige um controle muito rígido para que o acesso seja feito mediante autorização com algum grau de registro, como o CPF de quem acessa. Esse conjunto todo precisa estar devidamente harmonizado e consome tempo. É necessário um programa de treinamento intensivo”, disse, lembrando que, em São Paulo, foram elaborados mais de 20 vídeos para treinar os policiais, além do treinamento presencial.

Para Carolina Ricardo, do Sou da Paz, essa é uma política que não dá para ser implementada de forma acelerada, pois os processos licitatórios exigem escolher as empresas que fornecem os equipamentos e a parte tecnológica, como a capacidade de armazenamento, rastreamento e manutenção das imagens.

“No caso de São Paulo, que é um caso exitoso de uso de câmeras, é um modelo caro com custos altos, pois tem a opção de gravar 24 horas direto, além da gravação intencional em caso de ocorrência, com som e imagens melhores”, disse.

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Para a especialista, o governo federal tem o papel de ajudar a desenhar as normas técnicas e está fazendo isso com a consulta pública que já recebe sugestões. “É importante que o estado defina essa linha orçamentária fixa para as câmeras porque é um custo permanente. É uma linha que pode ser inicialmente induzida pelo governo federal, mas é importante que, no futuro, caiba nos orçamentos dos Estados.”

Mato Grosso e Goiás não pretendem adotar tecnologia

No Estado do Mato Grosso, as forças policiais não fazem uso de câmeras corporais, não havendo previsão de serem adotadas, segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado.

A Secretaria de Segurança Pública de Goiás disse que as câmeras não são usadas e não há um prazo estabelecido para que aconteça a adoção.

Segundo a pasta, o monitoramento da atividade policial e de eventuais condutas excessivas é realizado por meio das corregedorias setoriais, garantindo o controle interno das atividades.

Diretriz nacional está em elaboração, diz ministério

De acordo com o Ministério da Justiça, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi a corporação piloto para iniciar os estudos de adoção das câmeras corporais a nível federal.

Em maio de 2023 foi lançado o “Projeto Estratégico Bodycams” da PRF com simulações do uso de câmeras corporais nos uniformes dos policiais rodoviários. A licitação dos equipamentos ocorrerá este ano.

Segundo a pasta, está em estudos a incorporação de câmeras nos uniformes de todas as polícias sob comando federal, como a Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Penal, além da PRF.

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Um grupo de trabalho criado em agosto de 2023 pela pasta estrutura a proposta de uma Diretriz Nacional sobre o Uso de Câmeras Corporais em Segurança Pública.

O texto foi disponibilizado para consulta pública na Plataforma Participa+Brasil no dia 12 de dezembro último e as contribuições serão recebidas até o dia 26 deste mês.

Será incluída a possibilidade de financiamento de soluções de câmeras corporais para os Estados e para o Distrito Federal por meio dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública repassados na modalidade fundo a fundo.

“O Ministério seguirá na implementação da política pública sobre o tema, por meio do estímulo à utilização destes equipamentos por todas as instituições de segurança pública, financiamento de programas e projetos a respeito, aquisição de soluções tecnológicas e produção de normas técnicas e procedimentais”, disse.

As secretarias ligadas à pasta estão estabelecendo parcerias com outros ministérios, órgãos e empresas públicas para buscar a redução dos custos desta solução.

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