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Economista subverte Nelson Rodrigues e defende o estigma de vira-lata

Em 'O Elogio do Vira-Lata', Eduardo Giannetti reúne ensaios que vão de Mozart à política brasileira

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho

Vira-lata, sim, para seu governo. É um refrão alternativo do samba Cachorro Vira-Lata, que Carmen Miranda tornou popular em 1937 (“Eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão), mas bem poderia ser um manifesto. No lugar do ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda, o vira-lata define melhor o que é ser brasileiro, mestiço, sem pedigree. Também por isso o economista e pensador mineiro Eduardo Giannetti resolveu abrir seu novo livro, O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios, justamente com esse “manifesto” em louvor do tipo, acabando definitivamente com o “complexo de vira-lata” denunciado há exatamente 60 anos pelo dramaturgo Nelson Rodrigues. Subvertendo Rodrigues, Giannetti diz, ao contrário, que bom mesmo é ser vira-lata. E explica as razões.

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O economista Eduardo Giannetti, autor de 'O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios' Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Em entrevista concedida ao Aliás, o economista reforça a conclusão do ensaio inaugural de seu livro: o vira-lata celebra a amizade, o convívio e está sempre pronto para a fruição do momento, rejeitando o culto da pureza racial. Nossa condição de vira-lata, defende Giannetti, “é uma realidade genética atestada”. Somos, justifica o economista, afro-euro-ameríndio descendentes, uma mistura total. O vira-lata do “complexo” batizado por Nelson Rodrigues, porém, sente que isso o transforma em ser inferior.

Há inúmeros exemplos históricos e literários disso, como a negra Angélica do conto Miss Edith e Seu Tio, de Lima Barreto, que Giannetti usa para comentar um perturbador caso de vocação subalterna. Angélica, a faz-tudo de uma pensão carioca do Flamengo, fica radiante com a perspectiva de servir a um casal de estrangeiros caucasianos, até descobrir que “eles (os ingleses) são como nós”. Ou pior. O sentimento de inferioridade do brasileiro em relação ao resto do mundo – especialmente as nações ricas – “é uma realidade incontornável da vida brasileira”. 

O vira-lata, conclui Giannetti, “se vê como ele é visto ou imagina ser visto: mal-ajambrado e pé rapado”. E, acima de tudo, não se define pela profissão, como nos países de formação calvinista. Ao suor bíblico, observa o economista, o vira-lata prefere o suor dionisíaco, sem esquecer os milhões de desempregados que vagam pelo país e são jogados involuntariamente para o mercado informal. “Ainda vivemos no Antigo Regime, em que os governantes imaginam que o povo exista apenas para servi-los”. A operação Lava Jato, justifica Giannetti, tornou explícito o patronato político que usa o poder para se perpetuar nele, apertando o pescoço do contribuinte com uma carga tributária insuportável (hoje em torno de 34% do PIB, 10% a mais que a registrada há 30 anos). Esse, aliás, é o tema do terceiro ensaio do livro, que fala da desigualdade social no Brasil.

Mais adiante, na última parte, o leitor vai descobrir a origem de seu interesse pela filosofia social do economista inglês Alfred Marshall (1842-1924), que desistiu de ser ministro anglicano para formular uma política microeconômica cujo enfoque é justamente o capital humano. “O Estado é corporativista, anacrônico, ninguém representa os brasileiros que estão em situação irregular”, analisa Giannetti, defendendo a crença marshalliana no capital humano – a iniciativa, a invenção – como um fator de produção de riqueza.

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“As pessoas não aceitam mais a legitimidade da tributação governamental quando nossos indicadores de educação e saúde são desprezíveis e metade da população não tem coleta de esgoto”, diz, citando o slogan que deflagrou a Revolução Americana no século 18: “Nenhuma taxação sem representação”. Evoque-se que esse slogan nasceu do sermão de um pastor em 1750, não da boca de um político.

Giannetti, que usa a palavra transcendental inúmeras vezes nos 25 textos de seu livro (publicados entre 1989 e este ano), fala sobre suas outras crenças, especialmente na segunda das três partes do livro – a primeira dedicada a problemas brasileiros, a intermediária sendo uma coletânea de dispersos literomusicais e a terceira, um painel da filosofia econômica do professor, conselheiro da candidata à presidência Marina Silva.

No campo musical, sua preferência converge para o período barroco, mais particularmente para compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750). “A vida oprime, o som liberta”, escreve, revelando que ouvir a Partita II de Bach, constitui para ele, “a experiência religiosa por excelência”. Giannetti tinha 16 anos quando a ouviu pela primeira vez, graças a um amigo de escola. Sem conhecer teoria ou ler uma partitura, o economista desenvolveu um gosto musical bem acima da média, falando com desembaraço sobre os concertos para piano de Mozart e as obras litúrgicas de Bach. “Mozart não tem a elevação espiritual de Bach, mas gosto muito do classicismo austríaco do século 18 (ele é um profundo estudioso do Iluminismo), sentindo na obra de Mozart a crença numa ordem cósmica que nos transcende.”

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Ainda na segunda parte de O Elogio do Vira-Lata, Giannetti trata de um tema cultural de suma importância: a filosofia do poeta e ensaísta português Agostinho da Silva (1906-1994), autor de uma biografia de referência sobre Pasteur e dois livros sobre Fernando Pessoa. Giannetti escreveu uma introdução à edição brasileira das obras do filósofo lusitano, reproduzida em seu livro. Nele, o economista destaca o ativismo de Agostinho da Silva, incapaz de contemplar o mundo sem ter a vontade de interferir nele. Tanto é verdade que, durante os anos que morou no Brasil (de 1947 a 1969), ele ajudou a fundar a Universidade Federal de Santa Catarina, além de participar da criação da Universidade de Brasília.

Agostinho era um grande crítico do laicismo da sociedade contemporânea. Mas o “tom por vezes messiânico” de sua mensagem, alerta Giannetti, não obscurece a “justeza de seu argumento”. A transformação proposta pelo filósofo português não passa por uma revolução política, mas espiritual. Em épocas de crise como a atual, a leitura de Agostinho é recomendada com entusiasmo pelo autor brasileiro, que ficou estarrecido com as faixas pedindo intervenção militar durante a recente greve dos caminhoneiros. Comparando a paralisação de 2018 às manifestações de 2013, ele diz que o governo “agiu de forma atabalhoada em ambos os casos”, lembrando que, cinco anos atrás, o secretário de Dilma Roussef, Gilberto Carvalho, chegou a declarar que “o povo estava sendo ingrato” com o governo, como se a população devesse assumir o papel de vassalo do Estado. Não é esse, definitivamente, o Brasil que Giannetti quer.

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