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Ensaios de Georges Bataille na revista de arte 'Documents' são reunidos

Escritor francês editou, com Carl Einstein e Georges Henri-Rivière, a revista 'Documents' entre 1929 e 1930

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Por Sérgio Medeiros

Em 2015 saiu no Brasil o livro A Semelhança Informe, de Georges Didi-Huberman, no qual o estudioso francês se debruça sobre a revista Documents, publicada entre 1929 e 1930 na França, por Georges Bataille, Carl Einstein e Georges Henri-Rivière. Foi uma revista de arte exemplar, afirma Didi-Huberman, sobretudo porque, “nela, era possível ver reproduzidas e comentadas algumas das obras maiores do tempo, obras de Picasso, de Miró ou de Giacometti que, com frequência, estavam sendo postas em circulação pela primeira vez”. Didi-Huberman também chama a atenção para o fato de que nas suas páginas, que uniam texto com imagem, cabia igualmente a arte antiga (a pintura primitiva) e a arte popular (a história em quadrinhos), o que criava “passagens assombrosas” entre objetos “altos” e objetos “baixos”; por conta disso, um desenho de Delacroix podia conviver com um ex-voto... 

A tela 'Três Dançarinas', de Picasso, surgiu em 'Documents'nos anos 1920 Foto: Kieran Doherty/Reuters

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Não tínhamos, porém, no Brasil, tradução desses textos radicais, ou de parte deles. Os professores e tradutores João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes, que ministraram cursos sobre George Bataille na Faculdade de Letras da UFRJ, reuniram todos os ensaios e os verbetes que o romancista e pensador francês publicou na referida revista, os quais saem agora sob o título Documents (Documentos), numa impecável edição da Editora Cultura e Barbárie, com uma introdução de Denis Hollier, que fala de um saber que pretendia se apropriar do baixo e que se sujou com seu tema “abjeto”. 

O informe e o monstruoso estão aqui expostos, por meio de imagens de moscas e de menções à sujeira dos pés. O leitor terá a oportunidade de verificar, enfim, a visão escatológica assumida por Bataille, ao longo de dois anos, nessa revista “séria”, de arte, arqueologia e etnografia; depois, a ciência e a vanguarda artística acabaram por divergir... Bataille amava o vil, disse sarcasticamente André Breton, mas ele era capaz – daí sua atualidade – de assumir as perspectivas do animal e do vegetal, sempre invertendo hierarquias consagradas, sem temer situar-se, por exemplo, no nível do dedão do pé.

Palavras como “absurdo” e “horror” são comuns nos seus textos. Que ninguém espere encontrar, portanto, num texto como A Linguagem das Flores, uma abordagem idílica da natureza, embora o termo “amor” (a função natural da flor) seja mencionado nele.

As flores são belas, mas apenas à primeira vista e no conjunto: “De fato, a maioria das flores tem um desenvolvimento medíocre e mal se distingue da folhagem, algumas chegam a ser desagradáveis, se não hediondas”. O autor não nega, entretanto, a elegância de certos espécimes, mas deplora que sejam enfeados no centro pelos órgãos sexuais, descritos como “manchas felpudas”: “Porém, mais do que a imundície de seus órgãos, a flor é traída pela fragilidade de sua carola”, pois esta, ainda que maravilhosa, logo “apodrece impudentemente ao sol, tornando-se assim, para a planta, uma murchidão gritante”. A moral dessa história é tipicamente batailliana: “Haurida à pestilência do esterco, ainda que parecesse ter escapado dele num elã de pureza angelical e lírica, a flor parece bruscamente recorrer à sua imundície primitiva: a mais ideal é rapidamente reduzida a um farrapo de esterco aéreo”. 

A monstruosidade, ou a odiosa feiura, define igualmente o ser humano. Depois de compará-los a uma árvore elevando-se reta no ar, Bataille afirma que “com os pés na lama mas a cabeça mais ou menos na luz, os homens imaginam obstinadamente um fluxo que os elevaria sem retorno ao espaço puro”, porém não é essa a descrição que ele nos oferece: “A vida humana comporta de fato a fúria de saber que se trata de um movimento de vai e vem da sujeira ao ideal e do ideal à sujeira”, fúria que o pé humano, esse órgão baixo, suporta. “O pé humano é comumente submetido a suplícios grotescos que o tornam disforme e raquítico”, lemos em O Dedão do Pé, onde Bataille discorre sobre o pavor secreto causado ao homem por seu pé, ornado de calos e, sobretudo, como ainda é comum, reduzido à sujeira mais nojenta. Recorrendo à terminologia do autor, poderíamos afirmar que esse órgão lamacento (capaz de despertar paixões) é, nas páginas de Documents, a visão da ignomínia. 

Pode-se comparar o homem dos pés medonhos com a chaminé de fábrica, pois dela também trata Bataille, ao falar de sua infância nada feliz. Espantalho gigante ou enorme tentáculo, a suja chaminé é fonte de pesadelos: “Certamente não ignoro que a maioria das pessoas, quando percebe chaminés de fábrica, vê nelas unicamente o signo do trabalho do gênero humano e nunca a projeção atroz do pesadelo que se desenvolve obscuramente nesse gênero humano à maneira de um câncer”. 

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Para realçar a podridão e a deformidade física o autor “eleva o tom”, o que explica o seu estilo sarcástico e contundente, por meio do qual define o universo como uma aranha e um escarro. O que podemos tirar, afinal de contas, desse discurso violento? Talvez apenas a conclusão, nada consoladora, de que “somos escroques”, moralmente falando. *Sérgio Medeiros é poeta, tradutor, ensaísta, ensina literatura na UFSC. Publicou, entre outros livros, 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'Trio Pagão', ambos pela editora Iluminuras 

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