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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Acabaram-se os pontos, mas sempre haverá um táxi nos procurando quando precisarmos

‘Parou ali por parar?’ – ‘Senti que alguém precisava. Intuição. É meu trabalho!’

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Atualização:

Dez da manhã, terminada a sessão de fisioterapia, o céu escureceu, Mara avisou:

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– Corra! Vem vindo um toró.

Tentamos chamar um Uber. O primeiro desistiu. O segundo levaria 11 minutos, acabou mudando o rumo, o terceiro, talvez pela curta distância, deve ter achado coisa mais compensadora. Desisti, desci, quando cheguei à porta do edifício, os primeiros pingos caíram, abri o guarda-chuva. Não andei um metro, o aguaceiro desabou. Daqueles que na infância adorávamos, em minutos a enxurrada crescia, deixávamos as primeiras ondas limparem a rua, então entrávamos na água, as mães se desesperavam. Mas aquela infância está distante apenas 78 anos. Os táxis perto do prédio estavam sumidos, caminhei para um ponto coberto na Alameda Lorena. Havia cinco pessoas abrigadas. Nenhum táxi e a água jorrando. Imaginei que ia ficar hoooooooras ali. Fazer o quê? Então, um carro parou, abriu a porta.

– Quem quer táxi?

Boquiabertos, olhamos uns para os outros. Milagres do cotidiano paulistano. Perguntei:

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– Quem é o primeiro?

Ninguém se manifestou. Olhei para um, outro, disseram: estamos esperando a chuva passar. Entrei rápido, antes que alguém mudasse de ideia. Tinha pensado em Santo Antônio, nem pedi. Ele soube por telepatia e me atendeu? Quando preciso encontrar algo, peço a ele, sempre providencia. Se tivesse sido São Longuinho, eu teria de entrar e dar três pulinhos. Como fazer isso dentro de um carro? Dado o endereço, perguntei ao motorista, um jovem negro sorridente de nome Antônio (epa!):

– Parou ali por parar?

– Senti que alguém precisava. Intuição. É meu trabalho!

– Deu azar, meu trajeto é curto.

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Fila de táxis no Rio de Janeiro em junho de 2020, durante a pandemia de covid-19 Foto: Wilton Júnior/Estadão

– Melhor fazer cem trajetos curtos, um atrás do outro, do que um longo, tendo de voltar vazio. Não tenho aplicativo, sou eu comigo mesmo. E vou te contar uma história. Faz um mês, vinha da zona leste, o táxi à minha frente viu o chamado, olhou para o sujeito, um simplão com uma sacola, seguiu. O cara acenou para mim, parei.

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– O senhor pode me levar a uma empresa na Rodovia dos Bandeirantes? Lá me espera, volto?

Seguimos, chegamos, o porteiro recebeu-o com respeito, vi que era um considerado. Quarenta minutos depois, taxímetro ligado, ele voltou, tocamos para Santos, esperei, a tarde caía, voltamos ao mesmo lugar onde ele me acenara. Pagou em dinheiro vivo e ainda me deu baita gorjeta, ganhei por dez dias.

Ao descer em minha casa, paguei e dei mais cinco reais, agradeci: “Gente como você não existe mais”. Acabaram-se os pontos, estamos sujeitos às desistências, mas sempre haverá um táxi nos procurando quando precisarmos.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão

É escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de 'Zero' e 'Não Verás País Nenhum'

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