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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Festival em Manaus recupera ópera (quase) inédita de Francisco Mignone

"O Contratador de Diamantes" foi apresentada no Festival Amazonas de Ópera na noite de quinta, 18, com direção de William Pereira e Luiz Fernando Malheiro; montagem também será apresentada em São Paulo

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Foto do author João Luiz Sampaio

MANAUS - Esse é um ano importante para o Festival Amazonas de Ópera. Manaus está sediando a 16ª Conferência Anual da Ópera Latinoamérica. Representantes de quarenta e quatro teatros e instituições ligadas à ópera do Brasil, América Latina, Espanha e Estados Unidos tem debatido desde ontem sobre o setor. Volto a isso mais para frente.

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Ao mesmo tempo, o festival apresenta no Teatro Amazonas quatro diferentes produções de ópera: O Contratador de Diamantes, de Francisco Mignone; Peter Grimes, de Britten; Anna Bolena, de Donizetti; e Piedade, de João Guilherme Ripper. São poucos, se é que existem, os teatros brasileiros capazes de uma maratona como essa (ou que ao menos se disponham a tanto).

A ópera de Mignone foi apresentada na noite de ontem, 18, com direção cênica de William Pereira e direção musical de Luiz Fernando Malheiro. Não foi uma estreia - a ópera subiu ao palco pela primeira vez em 1929. Mas parte da partitura se perdeu com o tempo. E a ópera só está de volta depois de um trabalho de reconstituição liderado pelo maestro Roberto Duarte para a Academia Brasileira de Música (o Estadão contou a história da partitura em 2021, leia aqui).

Carlos Arambula em cena de "O Contratador de Diamantes" [Divulgação/Saleyna Borges]  

Escrita nos anos 1920, a ópera tem texto do italiano Gerolamo Bottoni, que se baseou em uma peça de Afonso Arinos a partir de um personagem real, o contratador Felisberto Caldeira, que viveu em Diamantina. Ele tinha direitos sobre a extração de diamantes na região, mas insurgiu-se contra a exploração da Coroa Portuguesa.

Da peça, já ela um retrato repleto de exotismo sobre a história do país, ao libreto, muito se perdeu. E o fato é que ele tem problemas flagrantes de construção dramática. O texto coloca no centro da história o amor entre o nobre português Camacho e Cotinha, filha de Felisberto, por sua vez alvo do interesse do Magistrado.

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É para o jovem casal que Mignone escreve algumas das passagens mais belas da música. Mas os dois somem no terceiro ato, que por sua vez foca-se em um longo discurso sobre uma visão de Brasil a cargo de Felisberto. Para colocar de outra forma: o libreto abandona personagens e, com isso, troca o sentido da narrativa no meio do caminho. O que era acessório, vira protagonismo; o que era protagonista, some.

A música de O contratador de Diamantes é a música que se espera de um compositor de 24 anos que vivia e estudava na Itália no início dos anos 1920. É influenciada de maneira muito clara pelas óperas de Giacomo Puccini e, em geral, pelos autores do que se chamou de giovane scuola, uma galeria de compositores que surgiu com o objetivo de renovar - ou ao menos levar adiante - a ópera italiana pós-Giuseppe Verdi.

Não são frutos do acaso os ecos de Umberto Giordano, Francesco Cilea, Carlos Gomes, ou também a evocação de Richard Strauss. Elas perpassam toda a ópera, mas, para além da influência, há uma função dramática. O primeiro ato, que se passa no ambiente dos nobres, tem música "europeia", digamos assim, com direito a um minueto na cena final. A partir do segundo ato, quando a cena se transfere para as ruas, elementos de uma música folclórica brasileira começam a se fazer presentes - a Congada é uma das peças mais famosas de Mignone, executada com frequência fora do contexto da ópera.

Isso sugere a percepção do sentido dramático, teatral, da música, que se soma à invenção melódica de Mignone, fazendo da ópera um momento especial da sua trajetória. Temos a tendência a pensar nessas obras perdidas como curiosidades históricas, que ficaram para trás por não terem sobrevivido ao tempo. Mas não dá para subestimar o simples descaso com o passado cultural, a falta de construção de uma memória. Há muito de Mignone, em especial o orquestrador, que já se revela na ópera. E ela nos remete a um período no qual Mário de Andrade atuava para dar forma a uma arte nacional - o que o fez criticar a atração pela música universal do compositor.

Giovanni Tristacci e Fernanda Allande em cena da ópera "O Contratador de Diamantes" [Divulgação/Saleyna Borges]  

A produção de William Pereira leva a ópera, por meio da cenografia de Giorgia Massetani, ao interior da Casa de Ópera de Ouro Preto, com figurinos históricos e uma movimentação dos cantores amaneirada, que se soma a elementos contemporâneos no que parece ser comentário irônico sobre a sociedade que viu a peça de Arinos nascer.

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O desempenho dos cantores, acompanhados pela Amazonas Filarmônica e o maestro Luiz Fernando Malheiro, foi particularmente especial. O barítono Carlos Arambula foi um Felisberto de autoridade, em um misto interessante de força e lirismo. Douglas Hahn, como o Magistrado, e Geilson Santos, como o Maestro Vincenzo, criaram caracterizações bem trabalhadas. Mas a noite foi do tenor Giovanni Tristacci e da soprano Fernanda Allande (vencedora, assim como Arambula, do Concurso Maria Callas de 2022), Camacho e Cotinha. São vozes especiais, equilibradas e seguras em todos os registros, que eles utilizam para criar nuances, coloridos e trabalhar dinâmicas para linhas de canto nem sempre fáceis. Uma bela maneira de marcar o retorno da ópera de Mignone.

Em tempo: no ano passado, o Festival Amazonas assinou termo de parceria com o Teatro Municipal de São Paulo e o Palácio das Artes de Belo Horizonte para que a ópera fosse apresentadas nos três palcos. Em São Paulo, a montagem está prevista para o ano que vem. Em Minas, onde desde então houve troca de direção artística, não se sabe ao certo o que acontecerá, apesar do compromisso feito entre as instituições. Em um festival que está discutindo, entre outros temas, a importância das parcerias artísticas, a postura mineira sobre a questão é bastante reveladora...

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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