MANAUS - Esse é um ano importante para o Festival Amazonas de Ópera. Manaus está sediando a 16ª Conferência Anual da Ópera Latinoamérica. Representantes de quarenta e quatro teatros e instituições ligadas à ópera do Brasil, América Latina, Espanha e Estados Unidos tem debatido desde ontem sobre o setor. Volto a isso mais para frente.
Ao mesmo tempo, o festival apresenta no Teatro Amazonas quatro diferentes produções de ópera: O Contratador de Diamantes, de Francisco Mignone; Peter Grimes, de Britten; Anna Bolena, de Donizetti; e Piedade, de João Guilherme Ripper. São poucos, se é que existem, os teatros brasileiros capazes de uma maratona como essa (ou que ao menos se disponham a tanto).
A ópera de Mignone foi apresentada na noite de ontem, 18, com direção cênica de William Pereira e direção musical de Luiz Fernando Malheiro. Não foi uma estreia - a ópera subiu ao palco pela primeira vez em 1929. Mas parte da partitura se perdeu com o tempo. E a ópera só está de volta depois de um trabalho de reconstituição liderado pelo maestro Roberto Duarte para a Academia Brasileira de Música (o Estadão contou a história da partitura em 2021, leia aqui).
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Escrita nos anos 1920, a ópera tem texto do italiano Gerolamo Bottoni, que se baseou em uma peça de Afonso Arinos a partir de um personagem real, o contratador Felisberto Caldeira, que viveu em Diamantina. Ele tinha direitos sobre a extração de diamantes na região, mas insurgiu-se contra a exploração da Coroa Portuguesa.
Da peça, já ela um retrato repleto de exotismo sobre a história do país, ao libreto, muito se perdeu. E o fato é que ele tem problemas flagrantes de construção dramática. O texto coloca no centro da história o amor entre o nobre português Camacho e Cotinha, filha de Felisberto, por sua vez alvo do interesse do Magistrado.
É para o jovem casal que Mignone escreve algumas das passagens mais belas da música. Mas os dois somem no terceiro ato, que por sua vez foca-se em um longo discurso sobre uma visão de Brasil a cargo de Felisberto. Para colocar de outra forma: o libreto abandona personagens e, com isso, troca o sentido da narrativa no meio do caminho. O que era acessório, vira protagonismo; o que era protagonista, some.
A música de O contratador de Diamantes é a música que se espera de um compositor de 24 anos que vivia e estudava na Itália no início dos anos 1920. É influenciada de maneira muito clara pelas óperas de Giacomo Puccini e, em geral, pelos autores do que se chamou de giovane scuola, uma galeria de compositores que surgiu com o objetivo de renovar - ou ao menos levar adiante - a ópera italiana pós-Giuseppe Verdi.
Não são frutos do acaso os ecos de Umberto Giordano, Francesco Cilea, Carlos Gomes, ou também a evocação de Richard Strauss. Elas perpassam toda a ópera, mas, para além da influência, há uma função dramática. O primeiro ato, que se passa no ambiente dos nobres, tem música "europeia", digamos assim, com direito a um minueto na cena final. A partir do segundo ato, quando a cena se transfere para as ruas, elementos de uma música folclórica brasileira começam a se fazer presentes - a Congada é uma das peças mais famosas de Mignone, executada com frequência fora do contexto da ópera.
Isso sugere a percepção do sentido dramático, teatral, da música, que se soma à invenção melódica de Mignone, fazendo da ópera um momento especial da sua trajetória. Temos a tendência a pensar nessas obras perdidas como curiosidades históricas, que ficaram para trás por não terem sobrevivido ao tempo. Mas não dá para subestimar o simples descaso com o passado cultural, a falta de construção de uma memória. Há muito de Mignone, em especial o orquestrador, que já se revela na ópera. E ela nos remete a um período no qual Mário de Andrade atuava para dar forma a uma arte nacional - o que o fez criticar a atração pela música universal do compositor.
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A produção de William Pereira leva a ópera, por meio da cenografia de Giorgia Massetani, ao interior da Casa de Ópera de Ouro Preto, com figurinos históricos e uma movimentação dos cantores amaneirada, que se soma a elementos contemporâneos no que parece ser comentário irônico sobre a sociedade que viu a peça de Arinos nascer.
O desempenho dos cantores, acompanhados pela Amazonas Filarmônica e o maestro Luiz Fernando Malheiro, foi particularmente especial. O barítono Carlos Arambula foi um Felisberto de autoridade, em um misto interessante de força e lirismo. Douglas Hahn, como o Magistrado, e Geilson Santos, como o Maestro Vincenzo, criaram caracterizações bem trabalhadas. Mas a noite foi do tenor Giovanni Tristacci e da soprano Fernanda Allande (vencedora, assim como Arambula, do Concurso Maria Callas de 2022), Camacho e Cotinha. São vozes especiais, equilibradas e seguras em todos os registros, que eles utilizam para criar nuances, coloridos e trabalhar dinâmicas para linhas de canto nem sempre fáceis. Uma bela maneira de marcar o retorno da ópera de Mignone.
Em tempo: no ano passado, o Festival Amazonas assinou termo de parceria com o Teatro Municipal de São Paulo e o Palácio das Artes de Belo Horizonte para que a ópera fosse apresentadas nos três palcos. Em São Paulo, a montagem está prevista para o ano que vem. Em Minas, onde desde então houve troca de direção artística, não se sabe ao certo o que acontecerá, apesar do compromisso feito entre as instituições. Em um festival que está discutindo, entre outros temas, a importância das parcerias artísticas, a postura mineira sobre a questão é bastante reveladora...