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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Qual será a esperança dos arqueólogos do futuro ao visitarem nossos perfis na internet?

As ideias anteriores são históricas e relativamente novas. Ter vida íntima, separada do público, é algo recente

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“Isso é pessoal, não é profissional. Roupa suja se lava em casa.” As ideias anteriores são históricas e relativamente novas. Ter vida íntima, separada do público, é algo recente.

Vamos começar com um termômetro bom: o banheiro. Retirar-se para um lugar isolado na hora em que bexiga e intestinos lançam suas demandas é muito contemporâneo. Os banheiros públicos escavados em Pompeia, Itália, ofereciam assentos para usuários calmamente sentados lado a lado. Não havia divisões. Defecar coletivamente e conversar com calma com o colega ao lado eram hábitos comuns. Grandes construtores de aquedutos, esgotos e encanamentos, os romanos tinham menos pudores do que nós.

Pessoa anda em frente à parede da antiga cidade romana de Pompeia, em foto de 14 de novembro de 2001 Foto: Mario Laporta/Reuters

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Pompeia foi destruída em 79 d.C. Quando avançamos mais de 1.600 anos, vemos o imenso Palácio de Versalhes – inaugurado sem espaços exclusivos sanitários. A vida na corte francesa era pública: o parto da rainha era visto por muitas pessoas. O despertar da família real tornou-se um teatro com plateia, como analisou Norbert Elias (A Sociedade de Corte). Quando Luís XIV agonizava em 1715, permitiu que a Corte desfilasse diante do seu leito final. Tinha passado a vida em exibição, seria coerente fazê-lo ao fim. Era a “morte curial”.

A burguesia do século 19 direcionou seu esforço na construção da ideia de intimidade e de vida privada. A casa tornou-se um lar que deve ser resguardado do olhar do mundo. O pudor burguês multiplicou banheiros de forma intensa. Separaram-se a esfera do trabalho e a da família. A ideia de conforto doméstico ganhou força. Parte importante da sociabilidade se concentrou na família. Despontou a necessidade de proteção das crianças. O branco do vestido de casamento (copiado da rainha Vitória) passou a simbolizar uma nova mulher pura voltada para o lar. Uma casa de classe média alta, com um banheiro separado para o marido e outro para a mulher, foi o ápice do processo de ascensão da vida privada, do resguardo e da intimidade corporal. O quarto com banheiro próprio, a suíte, passou a ser uma demanda básica para hotéis. Peter Gay (1923-2015) analisou a transformação, sob ponto de vista psicanalítico, na coleção instigante: A Experiência Burguesa – da Rainha Vitória a Freud (5 volumes, Companhia das Letras).

Em 1985, surgiu uma linda coleção, organizada por Georges Duby e Philippe Ariès, que cobre do Império Romano até o mundo contemporâneo (5 volumes, Companhia das Letras). Lembro-me do impacto da leitura, nos anos 1980, com novas perguntas: como se manifestava o luto no século 19? Quais eram as regras para visitar doentes? Como cresceu a ideia de ter espelhos em casa? Onde nasce o pudor? (sobre o tema pudor, consultar o volume 4: O Segredo do Indivíduo, página 450).

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Também é lindo analisar os volumes da História da Vida Privada no Brasil, com nomes de grandes historiadores, como Fernando Novais, Laura de Mello e Souza, Luiz Felipe de Alencastro, Nicolau Sevcenko e Lilia Moritz Schwarcz (também Companhia das Letras). Percorrer o texto e suas imagens muda nossa concepção de ver o passado, antes centrada em guerras e tratados, mas agora despertada para algo novo e cotidiano.

O Antigo Regime, vimos, era pouco inclinado à vida privada. O Mundo Burguês desenvolveu, em escala maior, a noção de intimidade. A partir do fim do século 20, iniciou-se uma nova transformação. Conhecer os hábitos mais íntimos virou demanda de mercado.

As redes sociais, no século 21, aceleraram o desmonte do edifício privado. Fotografar e publicar cenas domésticas, identificar hábitos pessoais de consumo, registrar cada prato e cada vaso da casa viraram traços do novo homem líquido do novo mundo vitrine. Isso deu acesso à visibilidade (instrumento de satisfação pessoal e de busca de recursos). Ser público vem consagrando determinada visão desejável de protagonismo e atrai visualizações pagas. Vaidade e ambição material celebraram bodas nas mídias sociais. O sentido da festa, da compra, da nova sala decorada ou de um novo item de maquiagem está na sua capacidade pública, hoje denominada de potencial instagramável. Luís XIV precisava ser visto pela Corte na hora derradeira; hoje, precisaria ser filmado, fotografado e publicado; tornar-se trecho de TikTok e outros meios se desejasse, de verdade, ser um Rei-Sol. A luz e o calor derivam das mídias sociais e, como isso favorece lançamento de produtos e circulação de mercadorias, o interesse da nova etapa capitalista se junta às nossas carências. Evaporou-se a privacidade.

Achar excessiva a exposição nessas redes é uma opinião que pode revelar uma idade mais avançada e pouca capacidade comercial de promover produtos associados à exibição. A vaidade associada ao capitalismo gera as redes; a incapacidade de vender se mascara sob o verniz da modéstia. Não temos mais público e privado, exibicionistas e humildes. Tudo agora se reduz a pessoas capazes ou incapazes de se tornar produtos. Esse é o estágio atual da nossa vida. Os habitantes de Pompeia defecavam lado a lado; nós usamos o vaso sanitário para falar e gritar ao mundo que somos felizes. Diferença? A falta de um Vesúvio explosivo que restaure o silêncio. Qual será a esperança dos arqueólogos do futuro ao visitarem nossos perfis na internet?

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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