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No jargão de arquitetos, “ponto de fuga” é uma técnica de desenho que permite representar objetos em duas dimensões de forma a parecer tridimensionais. Já na perspectiva de pessoas perseguidas, a expressão significa rotas salvadoras, que auxiliam a escapar de um adversário mais poderoso e bem equipado. “Muitas vezes, é o exílio”, explica o escritor e arquiteto Milton Hatoum que, de alguma forma, já utilizou aquelas duas formas. E justamente Pontos de Fuga (Companhia das Letras) é o título do segundo volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio, que o colunista do Caderno 2 lança nesta terça, na Livraria da Vila da Fradique.
Iniciado com A Noite de Espera (2017), o conjunto de três livros acompanha os anos de formação de um grupo de jovens cujos sonhos de liberdade são violentamente confrontados pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Hatoum pretende encerrar a trilogia no próximo ano, concluindo, assim, um momento definidor em sua carreira - afinal, depois de construir uma obra formada por romances cujo enredo era centralizado em Manaus, sua cidade natal, o escritor segue a própria trilha de vida, passando por pontos como Brasília, São Paulo e Paris.
Trata-se de uma longa narrativa, aquela que os alemães classificam como Bildungsroman, um romance de formação, ainda que Hatoum tenha se baseado em alguns fatos e personagens, utilizando a imaginação como principal construtora da trilogia. “Há, em toda a trama, um forte fator externo, que foi a presença militar, e outro interno, que move o romance: o drama de Martim, baseado na ruptura com a mãe e a difícil relação do pai. Esse relacionamento é um dos lugares mais sombrios do livro.”
A trilogia acompanha Martim, jovem paulista que se muda para Brasília junto com o pai, em janeiro de 1968, depois de uma traumática separação da mãe. Na nova Capital Federal, faz amizade na universidade, a UnB, com adolescentes de variadas classes sociais, desde um filho de embaixador até outro, morador de um casebre em uma Cidade Piloto, e cuja mãe trabalha como empregada doméstica. Desse grupo de estudantes, destaca-se Dinah, por quem Martim se apaixona.
“No contexto turbulento da ditadura, a expectativa de rever a mãe forma um arco crescente de tensão, envolvendo não apenas o protagonista, mas também seus amigos e outras personagens num ambiente de delação, desconfiança, violência e perseguição política”, explica Hatoum na introdução do segundo volume, atualizando o leitor sobre dados contidos no anterior, que termina com Martim fugindo para São Paulo, quando muitos de seus amigos são presos, deixando suspensa a relação amorosa com Dinah.
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Intimidade amorosa e também opressora de um ambiente fechado dá o tom da narrativa
Pontos de Fuga se inicia, portanto, com Martim ingressando na faculdade de arquitetura da USP e morando em uma república de estudantes no bairro da Vila Madalena - um grupo que lhe trará novas experiências e grandes companheiros para a vida. E, se o primeiro volume era ambientado quase sempre em espaços abertos, agora a intimidade amorosa e também opressora de um ambiente fechado dá o tom da narrativa.
“É o retrato de uma vida íntima, em que cada personagem pensa sobre a própria trajetória e também a do outro. Busquei aqui a diluição dos aspectos do romance”, explica Hatoum, que evitou escrever uma obra política. “Não se trata de uma trama que fala diretamente do poder, mas, sim, da relação entre a verdade histórica e o sonho daqueles garotos.”
Martim é um personagem peculiar - por meio de seus passos, o leitor acompanha seu amadurecimento moldado às custas de um país que se desconstrói. “Ele não perde suas convicções e se alimenta muito da trajetória dos outros”, observa Milton que, apesar das semelhanças (Martim é um arquiteto que envereda para a escrita), não o vê como seu alter ego. “Sou mais próximo do Nortista”, confessa, referindo-se a um dos mais apaixonantes personagens do livro - o outro é Ox (acrônimo de Osvaldo Xavier), guru intelectual do grupo, um liberal frustrado cujo perfil Hatoum se inspirou em um grande amigo.
Chamado de Nortista por ter nascido no Amazonas, o personagem vivia em uma cidade-satélite de Brasília até ser obrigado a fugir do País pela pressão militar. Foi para o Chile e, quando volta a Manaus, é para o enterro do pai. O retorno provoca-lhe fortes sensações, como se observa na longa carta que escreve a Martim, agora já vivendo em Paris. “Essa carta foi um dos momentos mais difíceis na produção desse romance, pois alterna euforia com desespero”, confessa Hatoum, que transforma a longa missiva no ponto alto do romance.
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“A anistia geral e irrestrita foi o grande engodo da recente história brasileira, pois deixou torturadores livres, impunes, não julgados, ao contrário do que aconteceu no Chile, na Argentina. Com isso, o aparelho paramilitar não foi totalmente desmantelado e continua em ação, praticando torturas”
Milton Hatoum, escritor e arquiteto
São inúmeras passagens marcadas pela emoção: “Uma pessoa pode suportar a dor física até o extremo, um extremo que se dilata até o fim de tudo, quando não se pensa em mais nada, nem mesmo na morte”, conta Nortista que, preso, é espancado enquanto vê um militar rasgar os livros que formavam sua biblioteca particular, obras de Gorki, Brecht, Chekhov. “Me espancava, rasgava páginas do livro A Mãe, gozando com riso de carrasco, o olhar frio, brilhante do ódio.”
“A anistia geral foi o grande engodo da história brasileira, pois deixou torturadores livres, impunes, não julgados”, revolta-se Hatoum. “Com isso, o aparelho paramilitar não foi totalmente desmantelado e continua em ação, praticando torturas.” Por conta disso, Pontos de Fuga, mais que seu antecessor, ecoa diretamente com fatos do presente.
A história da trilogia nasceu em 1980, mas foi deixada em decantação - Hatoum buscava amadurecer suas impressões sobre a ditadura, além de apaziguar a própria memória. A inquietação sobre questões fundamentais o convenceram a retomar o projeto há oito anos. “Inicialmente, seria apenas um volume, mas ficaria impraticável ter cerca de 800 páginas”, conta o autor que, depois de conversas com seu publisher Luiz Schwarcz, decidiu fatiar o material em três obras, divididas pelo tempo e espaço. Martim também ganhou mais protagonismo.
Segundo ele, o tempo que passa transcende a fidelidade das circunstâncias da vida. Cria novas perspectivas e a imaginação torna-se mais livre para trabalhar com o passado. Como dizia Jorge Luis Borges, em um ditado que Hatoum lembra com carinho, é o esquecimento como forma de memória.
Leia um trecho de 'Pontos de Fuga':
“Os policiais invadiram a sala, ninguém reagiu, a gente andou... ... em fila indiana para o curral dos detidos. O comandante da repressão ameaçou dar porrada em todo mundo, mas o coro de vozes nos dava coragem e emoção, nosso canto era mais forte que os berros do coronel e dos soldados, só paramos de cantar no estacionamento em frente ao câmpus. Todos encurralados, esperando a ordem para entrar os ônibus. Vi o comandante apontar uma árvore e ordenar: “Aqueles dois barbudos vão numa viatura”. Um dos barbudos era o Martim, os soldados cercaram os dois, não vi mais nada.”
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SERVIÇO:
'PONTOS DE FUGA' Autor: Milton Hatoum Editora: Companhia das Letras (312 págs., R$ 49,90) Lançamento: Livraria da Vila. Rua Fradique Coutinho, 915. Terça-feira (12/11), 19h