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Mauricio de Sousa e Henfil foram usados para alimentar inteligência artificial sem autorização

É o que diz um processo que corre na Justiça americana, movido por três artistas do país, sobre uso indevido de obras por empresas de IA, como a Midjourney; procurada, a empresa não se manifestou

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Foto do author Marcos Candido
Atualização:
Mauricio de Sousa (à esq.) e Henfil tiveram trabalhos usados para alimentar inteligência artificial, diz processo na corte americana 

Em janeiro de 2023, três artistas norte-americanas acionaram um escritório de advocacia na Califórnia para processar três empresas de inteligência artificial. Entre as companhias, estava a Midjourney.

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Com um comando simples, a plataforma cria fotografias, pinturas e charges a partir de referências de outros artistas. Só havia um problema: eles não autorizaram o uso das obras.

Na ação, obtida pelo Estadão, os advogados encontraram uma lista com 16 mil artistas usados na base de dados da Midjourney. Os nomes vão de Walt Disney a Frida Kahlo e trazem dois brasileiros: Mauricio de Sousa e Henfil.

“Se eu pedir para o robô criar uma arte com uma foto minha no estilo do Mauricio de Sousa, ele vai encontrar padrões como cabeça, orelha e traços da Turma da Mônica e me dar um resultado a partir disso”, afirma André Lucas Fernandes, diretor do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife.

Segundo o especialista, esse tipo de inteligência artificial pode ser usado na indústria cinematográfica, em artigos científicos, agências de publicidade, para criação de memes e já substitui profissionais de design no mercado de trabalho. Apesar disso, Fernandes afirma que a ausência de leis claras gera entraves sobre pagamentos e autorização dos autores originais das obras.

À Justiça americana, as artistas Sarah Andersen, Kelly McKernan e Karla Ortiz pediram a retirada das artes da base do Midjourney e o pagamento pelos direitos autorais do uso.

“Eu descobri quão exploradores são os modelos de AI e notei que não há precedentes na Justiça para lidar com a situação. Vamos mudar isso”, escreveu Ortiz no X, antigo Twitter.

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Por meio da reportagem, a ação chegou ao departamento jurídico da Mauricio de Sousa Produções, empresa que administra quadrinhos, séries, filmes, parques temáticos e produtos com a marca Turma da Mônica.

“Os advogados estão analisando o caso e esperando alguma legislação brasileira para poder desenvolver alguma movimentação, mas a MSP não se pronuncia sobre o assunto”, afirma José Alberto Lovetro, o “Jal”, desenhista e assessor pessoal de Mauricio de Sousa, também em nome da Associação dos Carturnistas do Brasil (ACB).

Oficialmente, a Mauricio de Sousa Produções não emitiu comunicado oficial sobre a situação.

Incomodado, o filho e curador da obra de Henfil, Ivan Cosenza de Souza, telefonou para Jal para criar uma ação conjunta contra a Midjourney.

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Henrique de Sousa Filho, o Henfil, alcançou sucesso com o lançamento de Os Fradinhos, nos anos 70, quando os personagens Baixinho e Cumprido se tornaram uma das marcas da resistência à ditadura militar junto com O Pasquim, onde o artista fez história ao satirizar o regime da época.

O consenso entre os representantes dos dois artistas sobre o Midjourney, porém, é aguardar a discussão do PL 2338. O texto, que está no Senado, também discute direitos autorais para o uso da inteligência artificial no Brasil.

Entre as propostas, está a exigência de que as plataformas de IA devem ter transparência sobre as fontes usadas e permitir que publicações científicas e jornalísticas publiquem conteúdo de IAs sem arcar com direitos autorais.

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O texto ainda está na fase de contribuições e, quando votado no Senado, voltará para novas discussões na Câmara dos Deputados.

O buraco na legislação se soma à dificuldade financeira para muitos desenhistas em manter um processo na Justiça americana, afirma Jal, como representante da Associação dos Carturnistas do Brasil (ACB). “[Sem lei] a coisa tem um risco, que é o custo para bancar a advocacia do processo. Sem esse custo, acho que um monte de gente estaria entrando na Justiça para rever direito”, diz Jal.

“Mas a legislação é um problema porque, quando entrar em vigor, já estará velha. As IAs não são algo do futuro: já são uma realidade”, diz.

Enquanto isso, o Midjourney continua a operar a todo vapor. No momento em que a reportagem é escrita, a plataforma contabilizava mais de 1 milhão de usuários online e 20 milhões de usuários no total.

Como funciona o Midjourney

O Midjourney usa a chamada “inteligência artificial generativa”. O robô é abastecido com material já existente na internet, como charges, fotos e pinturas para criar modelos cada vez mais aprimorados ao comando dos usuários. A empresa dá uma amostra grátis, mas também comercializa pacotes que chegam a até US$ 96 mensais, o equivalente a R$ 490.

A empresa se autointitula focada em “ampliar a mente e o espírito humano”. É presidida por David Holz e conta com uma comunidade que ajuda a abastecer novas versões da inteligência artificial. Segundo a ação movida pelas três artistas, foi Holtz quem anunciou a lista que inclui Mauricio de Sousa e Henfil no Midjourney, no final de 2022.

Evolução da Monica, personagem de Mauricio de Sousa, ao longo dos anos Foto: Mauricio de Sousa Produções

O uso dessas ferramentas tem gerado tensões e entraves burocráticos no mundo. Com o Senado norte-americano dividido, os Estados Unidos devem esperar decisões do judiciário para avaliar os pagamentos de direitos autorais a quem teve trabalho usado para alimentar inteligência artificial.

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Em março, a União Europeia regulamentou uma lei que exige que as empresas publiquem “informação detalhada dos conteúdos usados” para treinar os robôs, em respeito às leis e aos direitos dos autores pertencentes ao bloco.

Sob pressão dos tribunais, a OpenAI, dona do também gerador de imagens DALL-E, se adiantou e anunciou, em maio, que estuda a inserção de rótulos de identificação no conteúdo gerado com inteligência artificial

Em dezembro de 2023, a empresa norte-americana, comprada pela Microsoft, e dona do gerador de textos ChatGPT, foi processada pelo New York Times sob acusação de infringir direitos autorais ao usar reportagens para alimentar o robô.

Segundo Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil, um brasileiro pode fazer o mesmo e entrar na Justiça contra um site americano que comercializa serviços no Brasil, como no caso do Midjourney e OpenAI.

Apesar disso, afirma que, além dos custos altos para bancar uma ação judicial, as atualizações frequentes e o volume de informações são tão acelerados que é difícil detectar quem foi usado ou não - o que ele descreve como um “tsunami” com potencial até para uso político de desinformação.

“Estamos no começo de um processo. É como se estivéssemos em 1995, nos primeiros da internet comercial, discutindo o futuro da web”, diz.

O Estadão entrou em contato com o Midjourney por e-mail sobre as acusações e sobre seus processos, mas não respondeu até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto. A ação coletiva das artistas contra a empresa ainda corre na Justiça americana.

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Estadão - 06/01/1988 Foto: Acervo Estadão

Problemas com IA no mercado editorial brasileiro

No Brasil, ganhou repercussão o livro O Frankenstein, do artista Vicente Pecora. Em 2023, a obra foi retirada da lista de semifinalistas do Prêmio Jabuti na categoria “melhor ilustração” após uma denúncia de que Pecora usou o Midjourney para adaptar a obra Mary Shelley, de 1818, que está em domínio público.

Para responder à situação, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) proibiu o uso de inteligência artificial em todas as 22 categorias da premiação, tanto para texto, como para ilustrações. As inscrições desta edição da premiação vão até o dia 13 de junho.

Em entrevista ao Estadão, Pecora afirma ter gerado mais de 5 mil imagens até chegar ao resultado final. Para o artista, o Midjourney apenas organiza e oferece referência de milhares de outras criações para chegar a um novo resultado e equipara as novas ferramentas ao PhotoShop.

“O trabalho de um ilustrador ou designer não é de uma máquina. Ele sempre utiliza referências, às vezes menos referências até do que a das inteligências artificiais, e se inspira”, defende.

“Como eles [o Jabuti] vão checar se os inscritos usaram ou não inteligência artificial em algum momento do processo? E se eu usar para uma pesquisa, já contaria?”.

A denúncia sobre o uso do Midjourney contra Pecora partiu das redes sociais. Neste ano, ele não inscreveu trabalhos na competição.

O curador do Prêmio Jabuti, Hubert Alquéres, concorda que a checagem é “muito difícil” e, no caso dos finalistas e semifinalistas, depende de denúncias. Já na etapa de inscrições, a organização recorreu à autodeclaração.

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“O processo é autodeclaratório e o autor deve preencher um compromisso de que não usou inteligência artificial”, diz Alquéres. Caso algum vencedor tenha usado inteligência artificial e sido denunciado, o prêmio pode ser desconsiderado. “Vai ser uma questão ética de quem se inscreve”.

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