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Cinema, cultura & afins

Opinião|A arte da crítica: Escritores de cinema

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

A reflexão sobre o cinema não é exclusiva de críticos e acadêmicos. Desde que o cinema se afirmou como arte, diversos escritores decidiram ocupar-se da "sétima musa". Alguns escreviam de vez em quando, sobre alguma "fita" que haviam visto. Outros o fizeram de maneira mais frequente. Alguns foram profissionais da crítica, mesmo sem serem críticos militantes.

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No Brasil, podemos lembrar de dois casos excepcionais. Ainda nas primeiras décadas dessa arte, o poeta Guilherme de Almeida escreveu regularmente sobre cinema no jornalismo diário. Suas críticas, ou crônicas cinematográficas, estão reunidas no volume Cinematographos - Antologia da Crítica Cinematográfica (Unesp, org. de Donny Correa e Marcelo Tápia).

"Cinematographos" era uma seção do jornal O Estado de S. Paulo, assumida pelo poeta em 1926. Segundo o organizador Donny Correa "...até então uma nota de rodapé cuja função era informar ao leitor quais filmes estavam em cartaz em tais cinemas e em tais horários, e a transforma num espaço de reflexão diária sobre as produções que o leitor havia visto, ou veria, instigado pelos comentários."

Quem nunca o leu, pode achar que era apenas um poeta escrevendo sobre cinema, uma arte nova e que despertava curiosidade no público... e nos poetas. Para desfazer esse equívoco, basta ler alguns dos textos presentes no livro para descobrir o crítico que havia nele. Destaco apenas um, publicado em 17 de maio de 1928 e dedicado a Aurora, de F.W. Murnau.

Hoje, Aurora é considerado uma das obras-primas do cinema em todos os tempos. Mas, naquele momento, era apenas mais um filme chegando ao circuito comercial da cidade de São Paulo, embora obras anteriores do cineasta alemão já fossem conhecidas (e estimadas) pelo crítico, tais como Fausto e A Última Gargalhada.

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No entanto, logo na abertura, Guilherme de Almeida coloca Aurora em outro patamar, o mais alto possível: "Acabo de ver este filme (Sunrise), em exibição reservada. E a convicção que ele me deixa é esta: F.W. Murnau inventou o cinema. Inventou uma beleza nova. Inventou uma arte."

Na crítica, ele mescla uma aproximação com a poesia, dizendo que Murnau criou o "vago", o indefinível, citando versos de Verlaine ("Car nous voulons la nuance encor, Pas la Couleur, rien que la nuance" - Nós só queremos o meio-tom, nada de cor, somente a Nuança (tradução de Guilherme de Almeida).

Com esse recurso ao inefável, tema recorrente da poesia espiritualista, o crítico busca descrever a sensação propiciada pela arte de Murnau. Mas não se furta a uma análise, digamos, estrutural, ao elogiar a unidade na construção da obra: ""Aqui, não só não há personagens, como também não há cenas. Isto é: não há partes. Há um todo. Este filme é como uma máquina: cada peça é indispensável e está no seu lugar, destinada a produzir, com eficiência, um trabalho próprio".

Outro que escreveu bastante sobre cinema, e em vários veículos, foi o Vinícius de Moraes, poeta metafísico na juventude, diplomata e um dos pais da bossa nova. Seus textos estão reunidos em O Cinema de meus Olhos (Cia das Letras, 2015. Org. Carlos Augusto Calil)

Vinícius aborda o cinema em especial ao longo da década de 1940 até meados dos anos 1950, em jornais como A Manhã, Última Hora e revistas como Diretrizes e Sombras. Escreveu sobre Orson Welles, Charles Chaplin, Alfred Hitchcock, Vittorio De Sica, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, René Clair e Alberto Cavalcanti. Homem do mundo, cônsul brasileiro em Los Angeles, Vinicius frequentou a casa de Carmem Miranda na cidade e conheceu muita gente de Hollywood, atores, atrizes e cineastas, relações que fortaleceram seus laços com o cinema.

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No Brasil, tinha vínculo com o escritor Otávio de Faria e com o Chaplin Club, cujos membros sustentavam a superioridade do cinema silencioso sobre o falado, que surgiu por volta dos anos 1930 e provocou uma revolução no meio cinematográfico. Hoje a discussão sobre se o verdadeiro cinema é o mudo ou o falado parece bizantina. Mas, na época, mobilizou as melhores cabeças e penas e rendeu muita polêmica.

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O cinema foi um tema caro a Vinícius durante boa parte de sua vida. Talvez só tenha ficado em segundo plano quando ele se envolveu de vez com a música popular brasileira e tornou-se o principal letrista de compositores como Tom Jobim e Baden Powell. Escreveu a peça Orfeu da Conceição, que foi levada para o cinema por Marcel Camus com o título de Orfeu Negro. O filme ganhou o Festival de Cannes e o Oscar de filme estrangeiro

Um dos maiores escritores argentinos (talvez o maior entre todos), Jorge Luis Borges também se sentiu estimulado a dar seus pitacos sobre a arte das imagens em movimento. Esses textos estão reunidos em Borges em/e/sobre Cinema, organizado por Edgardo Cozarinsky.

As relações de Borges com o cinema são profundas. Vários filmes foram adaptados de obras suas. A começar por aquela que é uma verdadeira obra-prima, A Estratégia da Aranha, de Bernardo Bertolucci, criada a partir de um conto curto de Borges, Tema do Traidor e do Herói. Deve ser o melhor filme tirado de um texto seu, porém Borges nutria afeto por O Homem da Esquina Rosada, versão de um conto homônimo, dirigido por René Múgica. Aliás, segundo Maria Kodama, esposa de Borges, o escritor argentino só gostava dessas duas adaptações de suas obras.

Dentre eles, o volume mais expressivo (pelo menos o meu favorito) reúne os escritos de Alberto Moravia para a revista semanal L'Espresso, na qual ele manteve uma coluna de cinema ao longo de 30 anos. O volume (em francês) se chama, justamente, Trente Ans au Cinéma e é prefaciado por ninguém menos que Federico Fellini. Moravia e Fellini eram amigos e admiravam as obras um do outro.

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Como ficcionista, Moravia forneceu material para pelo menos duas obras-primas, O Desprezo, de Jean-Luc Godard, e O Conformista, de Bernardo Bertolucci, inspiradas em romances de sua autoria.

Já como crítico era bastante ativo e acompanhava os lançamentos do circuito em Roma, sua cidade. Sua seleta é puro cordon bleu. Vai de Metrópolis, de Fritz Lang a Voz da Lua, última (e incompreendida) obra do seu amigo Federico Fellini.

A Voz da Lua foi um dos filmes mais maltratados de Fellini. No entanto, Moravia dedica a ele linhas iluminadoras. Após fazer uma revisão da presença do satélite na imaginação humana e na literatura, de Leopardi, Ariosto e Virgílio, ele tenta entender os motivos do interesse de Fellini. "O que inspirou Fellini é a nostalgia do tempo, infelizmente passado, da infância, a única idade em que o sono da razão não engendra monstros, mas sonhos, mitos, contos e tantas outras deliciosas produções da imaginação. Despertado pelo ruído do mundo moderno, Fellini puxa o lençol sobre a cabeça e consegue reencontrar o sono." Diante do pesadelo contemporâneo (o filme é de 1990), o cineasta volta a sonhar.

Moravia tinha um método de escrita sobre cinema. Montava seus artigos em formato de ensaio, buscando significados e aproximações nos filmes que o estimulavam a escrever. Desenvolvia suas teses e destacava o que o filme tinha de forte (ou de fraco) segundo o caso. Reservava os finais para falar do elenco. Uma escrita muito saborosa, recheada de referências clássicas, embora nunca pedante. Saber com sabor, como dizia Barthes.

Até mesmo por serem artistas das palavras, esses autores evitavam o jargão técnico, que muitas vezes polui os textos de cinema, sobretudo os oriundos da universidade (há ensaístas universitários que escrevem bem, de forma clara e dirigindo-se ao leitor; são, porém, exceções). Reconhecem a especificidade do cinema, porém sempre o colocam no contexto mais amplo da cultura do seu tempo. Para falar a verdade, aprendo mais com eles do que com escritos falsamente técnicos e pretensiosos, que passam por erudição universitária quando são meras compilações de autores da moda.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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