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Opinião|Com a memória da ditadura inscrita na carne, 'Guapo'y', vence o 17º festival Cine BH

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
 

BELO HORIZONTE - Júri oficial e crítica coincidiram e deram o prêmio principal ao documentário paraguaio Guapo'y. A direção é de Sofia Paoli Thorne e a (emocionante) personagem do doc é a harpista e ex-militante política Celsa Ramirez Rodas.

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O filme começa de um jeito um tanto enigmático, com Celsa fixando ervas com esparadrapos em várias partes do corpo. Sua história vai se insinuando aos poucos, como filtrada pelo desejo de delicadeza de quem vai evocar coisas pesadas. 

Sucede isso mesmo. O  filme alude à ditadura de Alfredo Stroessner e à longa violação de direitos humanos praticada pelo regime. A sobrevivente Celsa Ramírez tenta curar com ervas as mazelas do corpo herdadas da ditadura. À medida que relembra, vão entrando outras personagens em cena - a mãe, também vítima do regime, o filho, nascido no cárcere. É um  filme sobre coisas duras, narrado com infinita ternura.

O júri oficial, composto por Sara Silveira (produtora), Mariana Queen Nwabasili (pesquisadora), Roberto Cotta (crítico), André Novais Oliveira (cineasta) e Carla Italiano (pesquisadora) escreveu uma bela justificativa para o prêmio: "A rememoração é uma forma de ressignificar o passado e garantir a existência de futuros possíveis. Os elementos articulados com maestria pela diretora deste longa, soube dosar com precisão o gesto que se aproxima para melhor escutar e respeitar as violências sofridas na pele das personagens ao saber lhes dar a distância necessária". 

Não foi o único prêmio anunciado. O troféu de "melhor presença" foi dado à atriz Gisela Yupa por sua performance em Diógenes, filme peruano de Leonardo Barbuy. 

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O prêmio de destaque foi para a força coletiva do povo de Tumaco no colombiano Puentes en el Mar, de Patricia Ayala Ruiz. 

Alguns podem estranhar a denominação destes dois prêmios. Porém, são sintomas de algo que começa a suceder em alguns festivais. Tenta-se substituir os tradicionais ator/atriz por uma denominação que vá além da denominação binária de gênero. Por exemplo, no festival Olhar de Cinema, de Curitiba, Mel Rosário, personagem transgênero do doc Toda Noite Estarei Lá, recebeu o prêmio de "melhor atuação". 

Essa solução não se dá sem controvérsia, uma vez que a opção pelo neutro reduz dois prêmios a um, tanto para protagonistas como para coadjuvantes. Já ouvi ressalvas veladas de atores e atrizes para este tipo de solução. Em off, claro, porque ninguém se dispõe a defender ideias e ser cancelado em seguida. E assim vamos capengando no longo caminho de incluir, não discriminar, não ofender e lidar com os usos tidos como limitantes do próprio idioma, de preferência sem praticar atos de violência contra a pobre flor do Lácio. 

Essa foi a premiação da mostra Território, inovação desta 17ª Cine BH, que também apresentou a Mostra Continente, não competitiva, com 13 títulos. 

Na Território foram oito títulos, em geral bem escolhidos, de diretores até o terceiro longa. 

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Claro, sempre se podem detectar desníveis em uma seleção, em especial entre cineastas em tese jovens. Por exemplo, em A la Sombra de la Luz, um certo esteticismo se sobrepõe à proposta de estudo dos efeitos tecnológicos sobre a vida das pessoas, em especial moradores do campo. 

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Também Llamadas desde Moscú - sobre quatro imigrantes cubanos que vivem na Rússia - me pareceu muito dependente do seu "dispositivo", o confinamento de pessoas queer no mesmo apartamento. 

Diógenes, filme peruano sobre um pintor de tablas de Sarhua, que vive isolado com os dois filhos pequenos, me pareceu muito bonito com sua fotografia em preto e branco. A situação em si já é comovente, e bem interpretada (a garota ganhou um dos raros prêmios do Cine BH). Parece, no entanto, que um certo hermetismo de linguagem colide com a simplicidade do argumento. 

Já o chileno Otro Sol brinca demais com a ideia do falso documentário ao percorrer a vida de um ladrão famoso que teria furtado relíquias da Catedral de Cádiz, na Espanha. No começo, parece que vamos ver uma obra-prima. Depois, o caminho vai se perdendo. As cenas no deserto do Atacama são inesquecíveis. Grande fotografia. Me deu vontade de rever o filme, em outro contexto. 

O argentino Moto tem qualidades, em especial no relacionamento entre as duas personagens centrais, fazendo um jovem casal assimétrico. Tem beleza poética, mas a ideia central de denunciar a criminalização da pobreza me parece um tanto perdida no decorrer do jogo. Está mais na palavra do diretor do que no filme em si. 

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Depois do vencedor Guapo'y, o que mais tocou foi Puentes en el Mar. Em debate após a exibição, a diretora Patricia Ayala Ruiz disse que a ideia inicial era fazer um documentário sobre Tumaco, povoado na costa sul colombiana. Lá uma mãe se preocupa com o filho adolescente, e tem que ele seja vítima das gangues que espalham violência pela cidade. 

Há um notável engajamento da população na filmagem, o que garante a base documental dessa ficção muito próxima da realidade. Tudo parece autêntico, fora alguns diálogos que soam às vezes pouco naturais. Nada que possa comprometer a beleza e a eficácia desse belo filme. 

Quanto ao representante brasileiro na Território, Toda Noite Estarei Lá, prefiro não comentar, pois o Cine BH é o terceiro festival seguido em que comparece. Essa repetição é um problema a ser enfrentado ou ignorado pelas curadorias, segundo a predileção de cada uma delas. Muitas não vêem o ineditismo de concorrentes como ponto de honra dos festivais. Outros pensam justamente o contrário. Em todo caso, abaixo remeto para o que escrevi em outra ocasião sobre esse documentário importante e carismático. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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