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Opinião|'Mundo Novo', as tensões sociais à brasileira

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

 

Bastante interessante esse caso familiar/social passado durante a pandemia. Em Mundo Novo, de Álvaro Campos, um casal interracial vê surgir a oportunidade de comprar e morar junto num apê do Leblon. Ela, Cons (Tati Vilela), uma moça negra, é advogada; ele, Marcelo (Nino Batista), um jovem branco, é grafiteiro. Casal amoroso, porém assimétrico, sem dúvida, no qual a parte forte é a feminina, o que não é nada incomum. 

A atriz Tati Vilela no papel de Cons, a advogada  

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Conheceram-se quando ele foi preso numa pichação e ela livrou-o da cadeia. Vão até a casa do irmão do rapaz pedir aval para um empréstimo destinado à compra do imóvel. Ele, Charles (Kadu Garcia), um homem do mercado financeiro, mora com o marido, o livreiro Carlos (Paulo Giannini), numa casa suntuosa, meio decadente, encravada no alto do Vidigal. A vista é a do mar do Leblon.

Um dado sobre as condições de produção. Diz o diretor que reuniu uma equipe de atores e atrizes desconhecidos no Morro do Vidigal, em plena pandemia, e filmou tudo em seis dias, com orçamento de 70 mil reais. Obra de guerrilha. Não por acaso, o diretor estudou cinema na Escuela de San Antonio de los Baños, em Cuba, escola fundada por Gabriel García Márquez. 

Filmado em preto e branco, Mundo Novo apresenta diálogos fluentes, bem naturais. O que ajuda o próprio filme a fluir. Nesse ambiente, digamos, natural, e mesmo naturalista, as tensões, em especial o racismo, insinua-se bem à maneira brasileira - quer dizer, disfarçado, nas entrelinhas, no subtexto. A inspiração, talvez distante, mas óbvia, é em Adivinhe quem Vem para Jantar, de Stanley Kramer, com Sidney Poitier no papel do namorado negro que a moça branca vai apresentar à família. As semelhanças são apenas residuais, pois Kramer, no auge do enfrentamento racial nos EUA (o filme é de 1967) faz uma obra de apaziguamento. Em Mundo Novo, as relações sociais se alteram, mas os pontos de fricção continuam evidentes. 

Há camadas narrativas que vão sendo incorporadas ao conjunto inicial. Quase tudo acontece no interior da casa, mas a dupla de jovens sai por algum tempo de cena e anda pela comunidade do Vidigal. Depois, num ponto com vista paradisíaca para a Baía da Guanabara, conversam e namoram enquanto fumam um baseado. 

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Alguns personagens se acrescentam quando surgem duas irmãs da moça para se juntar ao grupo no almoço. Não se pode dizer que o convívio entre as duas famílias seja belicoso, mas está longe de ser harmonioso. Surgem cenas engraçadas e pontos de tensão. O ponto em torno do qual se gira é sempre o mesmo: o aval para o empréstimo será assinado? O controle do irmão mais velho sobre o patrimônio da família vai progressivamente de falas alusivas a afirmações mais explícitas. 

Novo Mundo é uma curiosa radiografia da sociedade de classes do país, tirada num ambiente em tese liberal, mas que acaba por funcionar no mesmo registro excludente que as camadas mais privilegiadas e conservadoras. Em especial quando o dinheiro está em jogo e entram em cenas elementos irracionais, como o racismo, que é chamado de estrutural justamente porque não se percebe, embora produza seus efeitos deletérios. Nesse ponto, o verniz social é abolido, junto com as boas maneiras. 

O desfecho é aberto, o que é já um ganho narrativo em tempo de histórias taxativas, demonstrativas, edificantes e didáticas - portanto planas e inócuas. Final em aberto significa confiança na capacidade intelectual e fabulatória do público. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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