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Opinião|Triângulo amoroso fatal na polícia de Barcelona

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Um triângulo amoroso entre policiais, que termina em assassinato e queima de cadáver. Esse é o enredo do true crime à espanhola Corpo em Chamas, série em frenéticos oito episódios da Netflix. Maratona inevitável. 

A história, ficcionalizada, baseia-se no caso verídico de Rosa Peral, acusada de ter matado o marido, Pedro, em cumplicidade com seu amante Albert. Rosa e Albert teriam assassinado Pedro em sua casa, colocado o corpo no porta-malas de um carro e ateado fogo ao veículo, estacionado num lugar ermo, um pântano nas cercanias de Barcelona.  

 

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A história virou um rumoroso caso policial e judicial, dominando o noticiário espanhol, sobretudo nos veículos dedicados aos fait divers. Havia ingredientes para tal. Todos os envolvidos pertenciam à força policial da Catalunha. Pivô do crime, Rosa se parece a uma femme fatale ideal, daquelas de filmes noir americanos. Bela e manipuladora, segundo seus acusadores; vítima do machismo ibérico, conforme clama sua defesa, apoiada por grupos feministas. 

Quem era (é) Rosa,? parece ser a pergunta central dessa série envolvente, criada por Laura Sarmiento. 

O crime aconteceu em 2017. A dupla enfrentou o tribunal do júri em 2020. 

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A policial é interpretada por Úrsula Corberó, de A Casa de Papel. Eis aí uma atriz perfeita para viver a enigmática Rosa. Bonita, carismática e sedutora, mantém-se numa ambiguidade moral que funciona muito bem em termos narrativos. A série evita reduzir essa Bovary moderna a um estereótipo. Nem a condena a priori e nem a inocenta ou vitimiza. Deixa à Justiça a tarefa de depurar evidências e estabelecer uma "verdade" dos fatos, nem sempre clara e definitiva. 

Há um diálogo entre a inspetora incumbida do caso, Ester (Eva Llorach), e seu então ajudante no processo de apuração do caso, que ajuda a perceber o ponto de vista da série. Por ocasião do julgamento, três anos após o crime, este ex-auxiliar se tornou famoso por um podcast sobre crimes, enquanto sua ex-chefe continua seu trabalho anônimo de busca da verdade possível em cada caso. Na saída do tribunal, ele comemora o veredicto. Ela diz "Sim, mas há nuances". Ele: "o importante é que os culpados sejam punidos". Diante da certeza do colega, Ester arremata, talvez na única frase de conteúdo filosófico da série: "Por isso você tem um podcast de sucesso e eu não". 

Nossa época não é para ambiguidades, nuances e sutilezas. É preto no branco. Pão, pão, queijo, queijo, como se dizia antigamente. Tudo é literal. Um culpado é um culpado e ponto final. Sem maiores considerações. Acontece que a inteligência humana pede que haja considerações, mesmo para casos aparentemente mais óbvios. A complexidade humana não se adapta bem a esse simplismo contemporâneo. 

De fato, a compreensão possível do caso aumenta quando se levam em conta as circunstâncias que o cercam. Rosa tivera um casamento anterior a Albert, com Javier (Isak Ferriz), com quem teve uma filha (na vida real foram duas). Mesmo casada, parece ter levado uma vida amorosa muito livre e talvez por isso tenha sido mal vista num ambiente masculino, muitas vezes tóxico, como é o policial. Separada de Javier, manteve um caso com seu colega, Albert (Quim Gutiérrez). Conheceu Pedro (José Manuel Poga) numa festa da corporação e interessaram-se um pelo outro. Uniram-se. Para alegria dos pais de Rosa, parecia um casamento estável e gostavam do genro novo. Na intimidade, o relacionamento do casal era complicado. Rosa era instável. Pedro, idem além de ciumento e violento. Sabia do relacionamento anterior da mulher com seu colega Albert e temia que a ligação continuasse pelas suas costas. A vida do casal foi se tornando insuportável e Rosa buscava um meio de romper. Tinha também uma rixa com o ex-marido, na disputa pela guarda da filha de ambos.

Além dos rolos familiares, a série mostra o ambiente masculino e tóxico da polícia catalã. Suas festas cafonas, de machos cafajestes, em meio aos quais Rosa circulava alegremente, sempre vista como a fêmea disponível e de baixa moralidade. As fichas pregressas de alguns protagonistas não são exemplares. Pedro estava afastado por ter agredido violentamente um garoto na rua. Albert e Rosa estiveram envolvidas num caso suspeito em que um morador de rua morreu, aparentemente por suicídio. Imigrantes, vendedores clandestinos, sem-tetos são tratados aos pontapés pela Guardia Urbana. Nesse ambiente, o abuso de violência policial é tido como norma. Não se trata de uma exclusividade da polícia catalã. 

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Para quem deseja se aprofundar no caso, a Netflix disponibiliza também um documentário, contendo declarações inéditas da verdadeira Rosa Peral. A eles se agregam falas de promotores, advogados e conhecidos da ex-policial. É um doc interessante, complemento para a série. Nele, pode-se ver e ouvir com que desenvoltura Rosa defende seu caso no tribunal. E também algumas alterações da ficção em relação ao caso real. Por exemplo, na realidade, Rosa tinha duas filhas com seu ex-marido, ao invés de uma, como aparece na série. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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